segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Amor: palavra proibida


Existe uma palavra proibida
na gramática negra dos abismos.
Uma palavra atravessada pelo silêncio
que clama do fundo da noite
e dos recantos mais sombrios
onde foi um dia aprisionada.
É uma voz antiga e amordaçada
que encerra no seu seio,
na luz branca das sílabas esquecidas,
o poder de derrubar fronteiras
e o sopro eterno que acende universos.

Constantemente crucificada
e substituída por estranhos sinónimos
que dissimuladamente a deformam
e nada dizem da solidão do mundo
sangra no frio prolongado dos corações
como uma bênção rejeitada
ou uma ferida incapaz de cicatrizar,
murmurando em surdina
num eco que não se pode extinguir
e nos lábios dormentes do poeta
a sua ânsia de ser de novo revelada.


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sábado, 1 de dezembro de 2012

Perfume de flor


O perfume de uma flor
não se esgota
no orvalho matinal
nem se tolda
com o voo rasante
das abelhas do vento.
Como uma ânfora azul
aberta às caricias do sonho
contrai os lábios
acumulando ao longo do dia
novos aromas e fragrâncias.

Ao entardecer
o sol verga-se sobre si mesmo,
as borboletas dobram as asas
e se transformam
num sentimento novo e indecifrável,
a luz do dia lentamente murcha
na secura estéril dos canteiros,
mas, o perfume de uma flor,
reinventa-se a cada hora
e jamais se esgota.

Pelo menos,
enquanto durarem as variações do fogo;

a sedução do amor.



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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Sigilo

Foto: Queen_of_the_Damned (http://exogenbreach.deviantart.com/)


Cada face que atravessa o frio destes ladrilhos
espelha um segredo que não se pode decifrar
um fio escasso de luz a aproximar-se da nudez
com que a noite se encaminha para a sombra

Ninguém sabe ainda onde começou esse rumor
que nos chega como uma respiração ofegante
um vestígio de poeira a esconder uma presença
que não se há de saber nunca a quem pertence

O que sabemos é que as palavras se esvaem
à medida que vamos descendo dentro do poema
e lentamente nos cerca um silêncio de tinta gasta
como uma prece antiga que o tempo esqueceu
ou um sigilo que não ousamos sequer pronunciar


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terça-feira, 6 de novembro de 2012

Lar de idosos


Um sótão de eternas velharias
guarda uma paisagem virada do avesso
as cores exíguas de uma sina exilada
sem porta nem janelas
por onde a claridade possa respirar

A aranha cerca os cantos da casa
corroendo a geometria das paredes
lado a lado com a poeira empilhada
onde numa lenta insónia colige
suas teias de fio de baba e alabastro

Sombras de uma luz esvaída
na intimidade oxidada da ruína
flores secas mirram à ponta da mesa
sobre a toalha enrugada
numa jarra branca de porcelana

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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Um novo ciclo


Acordo subitamente de um sonho denso
com a boca a saber-me a cinza fumegante
e os níveis de alcatrão e nicotina no sangue
perigosamente abaixo dos mínimos permitidos.

Como um frémito que me tolda os sentidos
todos os alarmes soam ao fundo do corredor
onde os demónios da tentação rastejam
afiando as garras de encontro à porta.

Enrolo os dedos na mortalha branca do lençol
com vontade de me levantar e desistir, mas
fecho os olhos, e sonho com casas incendiadas.
Há sete dias que não fumo qualquer cigarro.

Incapaz de saborear o prazer do primeiro café
arrasto-me na solidão da manhã, e me interrogo:
se a resistência será um ato heroico e descomunal
ou apenas o início de um novo ciclo de terror?

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domingo, 14 de outubro de 2012

No fim da terra


Aqui onde a terra acaba
aos pés de um mar salgado e decrépito
vive uma raça de gente vergada
aos despojos da rebentação
gente que caminha junto às margens
a decifrar num areal silencioso
o mistério da mudez dos búzios
e dos sonhos que no horizonte se perderam

Aqui neste retângulo de areia
onde já não brilha a luz do farol
e os barcos se quedam no cais
ancorados numa agonia enferrujada
vive a esperança que definha
nos vultos que se debruçam ao relento
sobre a espuma inquinada da memória
vergados pela exaustão do medo

Aqui neste outono encurralado
a sul de nenhum norte
onde os dias se dispersam pelo vento
e os cavalos continuam perdidos no nevoeiro
sem cavaleiro
sem ninguém que agite o fulgor das bandeiras
e rasgue com a luz do facho reacendido
o caminho que as sombras toldaram

vive a gente que não teme a morte
nem a ameaça da espada infiel
e que herdou dos sonhos e dos deuses
a glória de um destino maior
porque aqui onde é o fim da terra
e o mar mergulha no azul profundo
um dia há de ser novamente
o princípio de um outro futuro.

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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Louco amor


Nenhum poema poderá descrever
a urgência do nosso encontro,
as noites impacientes que nos aguardam.
Nenhum verso, nenhuma palavra,
conhecem a sede desta loucura,
o oculto formigueiro que nos sacode.

Nada escrevas que denuncie este segredo,
deixa as páginas repousarem
na cumplicidade branca do silêncio.
Só assim haverá espaço no poema
para que o amor se transcenda
e possa galgar todas as margens.

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segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Fantasmas da memória


Os fantasmas da memória
chegam com os olhos inchados
e um sol encolhido
na palma enrugada das mãos,
como quem sai precipitadamente
das páginas de um livro já lido,
recuperando uma visão adormecida.
Incapazes de se resignarem
às fronteiras do esquecimento
batem com os pés na poeira do chão
reacendendo as cinzas de uma fogueira
que não se extinguiu ainda.
Com o giz branco da saudade
desenham nas paredes
um rosto que não pode ser apagado
pelas águas que a chuva devolve
nem pelo arrastar mórbido dos dias
enquanto caminham em silêncio
por entre as cortinas do vento
sem revelar por onde têm andado,
o que têm feito para resistir ao tempo,
e os secretos caminhos trilhados
do outro lado dos espelhos.
Presos a uma imagem que vou desfiando
com as unhas baças de raspar o vazio
renascem subitamente
de uma voz que se acende no escuro,
das frestas de uma janela mal fechada,
de um túnel sem luz ao fundo,
do nada onde se escondem
à espera de serem recordados.

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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Sonhos renovados *

* Óleo sobre tela de Flor (Reinadi Sampaio)


As folhas esquecidas pelo vento
repousam num banco de jardim
onde os dedos exaustos do pintor
deixaram as solitárias tonalidades
de uma ausência que o outono respira

uma árvore que se despe em silêncio
alargando a transparência dos braços
para que a luz de um sonho antigo
se possa assim libertar da inércia
e de novo nos venha iluminar por dentro

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sábado, 8 de setembro de 2012

Vendas e mordaças


No olhar das crianças
ainda há vestígios de luz.
Um brilho fugaz que atravessa
o gelo dos corredores
antes de se perder
num marasmo de sombras.

No olhar das crianças
há ainda uma esperança
que resiste em surdina
até que o frio saia
detrás das cortinas
e lhes devore as pupilas.

Ao longe
ouve-se o gemer enferrujado
de velhas máquinas de costura
a alinhavar vendas e mordaças

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sábado, 1 de setembro de 2012

Domadora de borboletas


Abres os braços
e na ponta dos dedos
pousam-te borboletas azuis

Ou será que é o vento
a abraçar teu corpo
de porcelana?


Levantas o vestido
como quem chama a noite
e há um sobressalto de estrelas
a incendiar o horizonte

Ou serão borboletas fugazes
simulando
com o celofane das asas
a metamorfose do teu corpo despido?


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domingo, 26 de agosto de 2012

Velhice


Todos os dias acordo num corpo antigo
cada vez mais longe de qualquer destino.
A distância que me separa do horizonte
é maior do que os passos que arrasto
num chão que desaba debaixo dos pés
enquanto sigo o futuro que se esgota
na sombra que se alonga nas dunas
como uma esponja sugando a claridade.

Sou agora um animal enrugado e pálido
a respirar a treva contaminada do poente
com os ombros desfigurados pela ruina
de quem segue o passo lento do cortejo
sem encontrar alento capaz de reverter
a traidora enfermidade destes órgãos;
dormência que embala no frio dos ossos
a cinza indecifrável dos últimos trilhos.

Há uma fogueira com o meu nome aceso
nas labaredas que desenham na paisagem
a sentença de um fogo que me chama
e nenhuma manhã é suficientemente clara
para iluminar o que resta do fôlego expirado
agora que devagar me aproximo da falésia
e me inclino sobre a vertigem do musgo
a contar as horas que faltam até ser dia.


Todos os dias acordo mais longe de mim
na febre de um corpo que já não sou eu.
Cada vez mais perto do lume.


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domingo, 19 de agosto de 2012

Despojos


Dos tempos de escola
já muita coisa esqueci
de tudo quanto aprendi.
As resmas de compêndios e teoremas
que nos enchiam a cabeça
com aquilo que precisávamos decorar
e que nunca nos serviu para nada
esfumaram-se no crepitar das fogueiras
que abraçam a pedra do esquecimento
com longos braços de névoa.
Perdi o rasto ao nome dos reis
que cerziram com heroísmo
a manta do nosso destino exaltado
e a todos os rios e afluentes
que nunca cheguei a conhecer
e que desaguam agora
num rumor de sombras adormecidas.
Já não recordo as fórmulas míticas
de um futuro que nunca se libertou
da ardósia negra dos quadros
e do movimento persistente dos apagadores
traçando um obscuro ritual.

Sobrou apenas desses tempos
o eco monocórdico das tabuadas
repetidas até à exaustão,
a luz inocente dos pátios
onde os sonhos ganhavam secretas asas
nos intervalos do cativeiro
e o mistério dos teus olhos de menina
a esvoaçar numa nuvem de pó de giz.

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domingo, 12 de agosto de 2012

Persistência


As gaivotas desenham na areia molhada
os contornos luminosos do teu corpo
com a luz esverdeada que beberam
na espuma das ondas matinais.
Como dois adolescentes alucinados
ensaiamos no veludo das dunas
o esplendor de um sol de cristal
que não se incendiou ainda
e que repousa em lençóis ocultos
no azul despido do teu ventre
como um enigma de brisa e fogo
à espera de ser decifrado
pela persistência dos meus dedos.

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sexta-feira, 6 de julho de 2012

Janelas


Abro as janelas
para te ver chegar
como quem acende uma vela
para iluminar a noite
ou fecha lentamente os olhos
para morder um desejo

Ligo o piano metálico
que reproduz a tua voz
e deixo-me enfeitiçar
pela caligrafia do teu sorriso
a desfazer na penumbra
o longe que nos cerca

Abro as janelas
e as asas sonâmbulas
até cruzar as fronteiras
e chegar na luz do luar
ou na nuvem de incenso
que liberta o éter das paixões

Nos oceanos da tua ausência
sopro as sete ondas
do ciclo maior da rebentação
e fico, deste lado da margem,
a escutar o marulhar do teu corpo
ancorado nos limos do meu peito

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Pois é, mais um ano se passou. Chegou novamente a altura de eu partir, durante alguns dias, para umas merecidas e repousantes férias. Voltarei, em Agosto, para partilhar com todos vós as minhas palavras e a minha amizade. Voltem também, porque a vossa presença e o vosso carinho, são a mais importante razão da existência deste blog.
Um grande abraço a todos

Runa

domingo, 1 de julho de 2012

Poema para ti


Nunca ninguém saberá
que escrevo este poema para ti
com pequenos sinais que esconderei
na direção enviesada dos versos
e que só tu serás capaz de decifrar
ao ver teu nome oculto nas sílabas
como um pássaro de asas negras
abraçado pela sombra do crepúsculo.

Sentada do outro lado do rio
numa margem que não conheço
abres os braços para a corrente
tentando fixar o meu rosto
no espelho ondulante das águas
e sorris, de cada vez que uma ponte
se estende entre as duas margens
e imaginas que sou eu que chego
com uma mochila cheia de versos.

Quem quer que leia este poema
apenas verá do todo da paisagem
as árvores frondosas que a decoram
mas não os ninhos que nelas erguemos,
as águas desamparados do rio
a correr para o regaço do mar
mas não os lábios molhados
pelo desejo que nos transcende,
a sombra negra do pássaro
a atravessar a linha do crepúsculo
mas nunca a plumagem da tua nudez
coberta pelo calor do meu corpo.

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segunda-feira, 25 de junho de 2012

Fechado a qualquer luz


As crianças riscam com as unhas
no branco sujo dos muros
os sinais de uma decadência
que o vento já anuncia no horizonte

Cercados pela ausência de futuro
miram-se no reflexo da cal
e apenas vislumbram a névoa
de um futuro que se fecha a qualquer luz

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domingo, 17 de junho de 2012

A cor rubra do desejo


Envolto num ritual de vertigens
persigo os trilhos do amanhecer
nos reflexos que a noite desenha
sobre o teu dorso suspenso

Há um fogo à espreita
na transparência da pele…

Cego pelo aroma dessa nudez
esvaio-me num sussurro felino
afagando os declives da tua cintura
banhada pela claridade do luar

Há um fogo que se agita
na luz tensa do desejo…

Uma dança de lírios brancos
a acender o brilho das fogueiras
cada vez que te movimentas
anunciando o derradeiro gemido

Há um fogo a explodir
no fluxo quente do teu corpo…

E tudo se incendeia à volta do leito
quando os teus lábios se fecham
libertando a dormência do pólen
que amaina a cor rubra do desejo

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segunda-feira, 4 de junho de 2012

Palavra alheia


Não, eu não sou poeta.
Humildemente me confesso.
Não passo de um usurpador.
Alguém que se alimenta da palavra alheia,
como o parasita que bebe o sangue
ainda fresco do animal moribundo.
Nada sei daquilo que escrevo.
Tudo o que digo vem da voz inquieta
que me visita no sobressalto das noites,
um fantasma solitário que me habita as profundezas
recitando os versos encharcados
de um delírio que lhe fere os sentidos;
e me escolheu para legar o espólio
de uma febre incógnita e sem limites
que lhe incendeia o espírito.

Aceito a tarefa de dar luz a essas palavras
que crescem no coração da sombra;
embrulho-as na tinta azul dos dedos
e disponho-as, em breves camadas,
nas folhas despidas do caderno.
Coloco uma virgula ali, um ponto acolá,
apenas para manter um certo equilíbrio,
mas nada altero àquilo que foi dito.
No final, acrescento-lhe uma data e assino,
fingindo que fui eu quem as escreveu.

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terça-feira, 22 de maio de 2012

Encruzilhada


Ocultas na ostra encerrada da infância
repousam as pérolas que o verão cuspiu
quando na boca tinha ainda todos os dentes.
Tudo se perdeu na farsa desta paisagem
envenenada pelo enxofre que o frio respira
para se alimentar da claridade que definha.

Todos os insondáveis nomes do inverno
que acumulámos durante o embalo do sono
sobrevoam os pátios de onde nos ausentámos
como barcos à deriva no mar deserto
a serem consumidos pelo feitiço das algas
numa vertigem de ferrugem e sinais inúteis.

Nenhuma voz é o som de um bater asas
que nos devolva o rasto dos trilhos perdidos
quando a névoa esmaga a luz das manhãs
e nos mapas inconsequentes da encruzilhada
buscamos uma ponte que atravesse o abismo
ou um deus que nos mostre outro caminho.

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sexta-feira, 11 de maio de 2012

Fiando o amor


Com fios de algodão
fias a flor do nenúfar
e a paisagem colorida
de um lago de serenas águas

Com fios de luz
fias o corpo do sol
e o pássaro branco
que percorre o azul do céu

Com fios de esperança
fias a árvore frondosa
e o estreito caminho
que se projeta para fora do tear
como uma porta aberta
a quem quiser entrar

Com fios de sonho
fias teu coração de prata
e repousas à sombra das margens
esperando que finalmente chegue
a hora do amor.

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sexta-feira, 4 de maio de 2012

Solução final


Os corpos despem-se
para mostrar o medo
tatuado no frio dos ossos
como quem encena um ritual
num espelho de memórias
que nunca se irão dissolver
ou quem vem do fundo do abismo
com a cegueira no olhar
para ficar gravado
no néon de uma luz demente

Os corpos respiram
enchendo os pulmões
num grito de lenha calcinada
e se encolhem no fumo
de um céu estilhaçado
como estrelas enrugadas
a destilar a nova estética
de uma febre coletiva
que a noite cospe
pelas chaminés do tabernáculo

Os corpos sem destino
são só o irrelevante pormenor
de uma alegoria escarlate
que nos visita enquanto dormimos;
um pesadelo de sombras inquinadas
num vagão de cinzas
a abarrotar de ossos doentes;
o refinado requinte do ódio
a confundir-se com o silvo disforme
que anuncia o fim da linha

O fogo
é agora a derradeira solução
desses corpos despidos de esperança
a caminho de lugar nenhum;
a expiação de um veneno
que nem os olhos conseguem descrever
e, a morte,
pintada com absurdas cores,
é apenas um recomeço
para aquilo que foi interrompido




sexta-feira, 27 de abril de 2012

Combustão


Nas minhas mãos trémulas
teu corpo sereno aguarda
o fugaz poema
que escreverei esta noite
com as silabas quentes
de um desejo há muito anunciado.

De pequenos e roucos gemidos
será feita minha poesia
na rima cruzada dos corpos
formando uma única estrofe
sem versos,
sem qualquer palavra que possa trair
a febre mítica dos sentidos.

Esta noite trocarei as palavras
pela vogal sussurrante dos lençóis
e pelo frémito que percorre
a linha ardente dos teus lábios
e será este o poema
que a pena branca da alba
num fôlego derradeiro
irá pela manhã gravar
na incandescente memória
dos corpos em combustão.

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sábado, 21 de abril de 2012

Agrafia


Esqueci o começo deste poema
que compus em pensamento
e que tento, sem êxito,
estampar na nudez da folha,
atraiçoado pela tinta negra
que me mancha os dedos.

Lembro-me que falava de ti
e do desejo de te ter aqui
mas não sei que silabas inventar
para abraçar teu corpo distante
agora que a hesitação dos pulsos
encalha na inercia da memória
sublinhando o vazio da tua ausência.

Sob a luz baça do candeeiro
desenho um suspiro sem silabas
e em silêncio me deixo afundar
na erosão transparente do papel,
como uma maré que de súbito vazou
deixando a descoberto no areal
a caligrafia desfocada do teu rosto,

e até mesmo o final deste poema,
que compus em pensamento,
acabei também por esquecer.

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sexta-feira, 13 de abril de 2012

Um poema que me imortalize


Como todo o poeta
busco o poema que me imortalize
aquele que faça prevalecer meu nome
muito para lá da minha ausência.
Não será certamente este
nem o que virá a seguir
talvez nunca o consiga escrever
nunca seja capaz de desvendar
o enigma das palavras que desafiam
a passagem insone dos tempos
e permaneçam na memória breve
daqueles que nunca me conheceram.

A cada tentativa
vou desperdiçando esse fito,
esgoto-me em silabas de fumo
que esvoaçam num frémito breve
e se rasgam nas arestas da ventania,
mas nem por isso desisto.
Iludo-me nessa busca incerta,
poema após poema,
fracasso atrás de fracasso,
rasgando as veias,
implorando às musas insondáveis
um click de inspiração,
uma luz que se acenda de súbito
no clarão branco do sonho
ou nas asas dormentes da loucura.

Talvez num dia
de rara e fugaz magia
se acenda o mistério dessa visão,
o círculo secreto do fogo
que guia a mão dos talentosos
na transparência dos trilhos,
e a soma de todos os meus versos
seja o secreto passaporte
para atravessar o anonimato
e chegar, como um deus arrebatado,
à muralha das cidades lendárias
onde ecoa a voz dos imortais.

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quinta-feira, 5 de abril de 2012

Uma dor que não é minha


Acampada no meu peito
vive uma aranha triste
tecendo os fios de névoa
de uma obscura teia.
Quando escrevo
desliza pela folhas do caderno
como uma viúva errante
a envenenar-me a caligrafia
e a cercar as silabas
com a luz cega do seu luto,
entoando uma melancolia
que me ata os pulsos
à seda sombria do seu choro
e me impele a declamar
numa vertigem de carvão calcinado
os versos mutilados
de uma dor que não é minha.

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sexta-feira, 30 de março de 2012

Abraça-me, mãe


Abraça-me, mãe
que acabei de chegar
do outro lado do túnel escuro
e não consigo ainda abrir os olhos
para desvendar a luz que me estendes.
Perdi as asas que tinha dentro de ti
quando de súbito se rasgou
aquele cordão que nos unia,
e tenho medo agora.

Ensina-me, mãe
a descobrir os caminhos por percorrer,
traça no chão de poeira
as fogueiras que sinalizam o horizonte,
tece o fio que irá guiar
a memória frágil dos meus passos
e o mistério das travessias por desvendar.
Sou ainda uma sombra clandestina
à procura de um novo lar.

Mostra-me, mãe
as cores novas deste sonho
que iremos sonhar acordados,
canta-me as doces melodias
que nunca ninguém cantou,
conta-me os segredos que não conheço
e as histórias que não vivi ainda,
afaga-me suavemente
com o tato perfumado dos teus dedos.
Tudo para mim
é um universo em expansão.

Embala, mãe
no teu colo de linho brando
este meu coração de papel
que bate impaciente
açoitado pelos ventos da madrugada,
sacia com o açúcar dos teus seios
esta sede que trago comigo,
este desejo de infinito,
esta sedução fugaz que me anestesia.
Dá-me uma razão para desafiar o futuro.

Protege-me, mãe
das grandes rodas do destino
que começaram já a girar
no roxo débil da minha carne,
acende com a luz do teu sorriso
os espelhos de prata do meu futuro.
Sou o barro que moldaste
na paciência demorada do teu ventre
para que a alquimia do sonho
se tornasse realidade.

Chego-me a ti, mãe
e lentamente me enrosco
no refugio quente dos teus braços
para que laves este corpo
ainda despido de tudo
com a água benta que transborda
do teu choro de felicidade.
Faltam-me as palavras ainda
para dizer quanto te amo.
Abraça-me, mãe.
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quinta-feira, 22 de março de 2012

Canção dos amantes ausentes


As mãos que esfregam as pálpebras
procurando ver dentro da noite
são as mãos que sussurram ao vento
o esplendor florido do teu nome
no clarão que acende no escuro
a luz de uma felicidade prometida.

As mãos que tecem no vazio
a metáfora das estátuas ausentes
são as mãos que em segredo alisam
do lado embaciado dos vidros
as dunas longínquas do teu rosto
num frémito de intenso desejo.

As mãos que tangem lágrimas de tinta
na harpa silenciosa das madrugadas
são estas mãos que buscam decifrar
o calor dos dedos com que pintas
a tela onde um dia nos iremos juntar
e traçam no último verso do poema
as quatro letras da palavra AMOR.

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sexta-feira, 16 de março de 2012

Eterna ausência dos sonhos


Os mortos desenham à noite
no mármore turvo das lápides
a solidão húmida da terra
com os ossos a ranger de frio
e uma lágrima na face pálida
lamentando incessantemente
numa caligrafia de cinzas e pó
a ausência total de sonhos
que lhes embala a eternidade do sono


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quinta-feira, 8 de março de 2012

Mulheres que não desistem de amar


As últimas flores do verão
recolhem as pétalas frágeis
num regaço de terra macia,
dobram o tronco exausto
pela carícia de uma luz ardente
e se preparam, em silêncio,
para a melancolia do outono;
a longa carruagem do frio
a atravessar a sombra dos dias.

Não choram nem lamentam,
o pólen desvanecido
e o estio que se enreda no corpo;
não reclamam o vigor despido
pelas unhas agrestes do tempo,
nem murcham
com o sopro bafiento do inverno.

Descalças desenham no chão
o perfume de um horizonte futuro
e nos braços do vento flutuam
sem nunca desistir de sonhar,
sabendo que sempre existe
um oculto caminho de regresso
à primavera e aos braços do amor.


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sexta-feira, 2 de março de 2012

Viúvas do mar



As mulheres vêm ao romper do sol
com os xailes inchados de luto
e o olhar voltado para dentro
a destilar uma agonia antiga

Cruzam as mãos sobre o peito
numa prece esbatida pelo cansaço
a aconchegar o frio que trazem nos ossos
e que herdaram da ressaca dos temporais
que se abateram subitamente, sem aviso

Num solilóquio vago e demorado
maldizem as tramas do destino
e se entregam a um ritual sem horizontes
enterrando os corações no areal

à espera que o mar lhes devolva a vida


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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Jobs for the boys


As sombras marcadas com o selo dos eleitos
saíram dos covis incrustados na rocha
e caminharam sobre as cinzas do areal
com o tronco dobrado numa inércia ensaiada.
Traziam as mãos carregadas de oferendas
e uma ânsia de mastins esfaimados
na espessa baba que lhes corria dos cantos da boca.
Dos braços, sempre flácidos e pendentes,
crescera-lhes um emaranhado complexo de redes
com que aprisionavam os pequenos cardumes assustados
que depois vendiam às industrias de transformação.
Era assim que conquistavam o favor das ondas
e podiam atravessar, incólumes, o trilho das tormentas.
Imunes aos naufrágios, refugiavam-se nas fendas
e nas grutas escuras, escavadas na falésia,
atentos aos sinais e à mudança das correntes.

Quando os deuses se ergueram do fundo das águas
e começaram a repartir os despojos da maré,
rapidamente avançaram sobre a esteira de corais
e se desfizeram numa rebentação de vénias.

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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

No último verso de um poema de amor


O poeta adormeceu e finalmente teve um sonho,
onde o mar se abria, e das suas águas rasgadas
saía uma deusa iluminada por um farol de corais.
Com asas de borboleta azul, esvoaçava
à volta de uma fogueira arrefecida pelo frio,
como uma bailarina enfeitiçada pelo desejo
a dançar descalça sobre um chão de pedra,
com o corpo inclinado na direção do sol.
No ventre, trazia dois corações tatuados
envoltos numa grande bola de fogo,
que se incendiava sempre que ela se agachava
numa pose que fazia recuar as sombras.
Seus cabelos eram um véu longo e dourado
que ondulava quando o vento movia as ancas,
numa cadência que agitava o sono do poeta
e se parecia com a respiração ofegante do mar.
Sem saber que estava aprisionada ao sonho
dançava sem cessar, sacudindo a noite do rosto,
enquanto o luar lhe rebentava nas pupilas
despertando sua ancestral vocação de musa.

Quando a manhã lhe pousou sobre os ombros,
exausta, deixou cair na areia o corpo saciado,
à espera de ser imortalizada pelas mãos do poeta
no último verso de um poema de amor.


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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Reprise



Saímos de casa pela manhã
com ganas de devorar o dia
lavadinhos e perfumados
prontos para rebolar no lodo
que tolda o quotidiano dos caminhos.
Com a boca ainda ressequida
lambemos as últimas sombras da noite
e todas as esquinas do frio
antes de chegar ao café do costume
onde num ritual de asas enferrujadas
ingerimos o primeiro veneno do dia.
Entre duas baforadas no cigarro
e um tremor vago que sacode o corpo
trocamos o rosto ensonado
pelo disfarce insone que nos permite
agarrar o esplendor desabitado da vida
seguindo a linha desenhada nos passeios
com os pés a resvalar dos estribos.

Não é permitido gritar nem desviar o olhar
lemos nos cartazes coloridos
que anunciam em placardes gigantes
todo o esplendor da teia
enquanto transpomos o degrau já gasto
pela persistência mórbida dos passos
escondendo no bolso apertado das calças
as lágrimas que jurámos não derramar.
Fantasmas de uma dimensão sem idioma
despojamo-nos de tudo o que temos
para alimentar a sede de um cartão de crédito
que nos vai permitindo manter à tona
nas águas estagnadas donde nunca sairemos
lambendo a poalha inquinada das vagas
e o papel químico das manhãs
que reproduzem a repetição grosseira dos dias.
São precisas mais drogas agora
para continuar a desfiar o novelo.

À hora do almoço, como uma brisa refrescante,
uma pequena brecha se abre
no centro da arena onde nos perfilamos
como gladiadores condenados.
Uma inesperada trégua
para uma cola e uma sandes de atum
permite-nos retomar o fôlego e o alento
antes que o gemer sufocante das roldanas
retome sua cabala alucinada
arrastando-nos pelo suor dos cabelos
até aos limites esvaídos do dia
e o peso da grande roda cilíndrica
repetidamente nos volte a esmagar
como lagartas insignificantes.
Nenhuma estratégia nos vale agora.
Nenhuma droga pode suster
as foices afiadas da dor
que nos retalham a réstia de alento.

Sob o fogo extinto do crepúsculo
enxaguamos o sangue das feridas
sacudimos a poeira do corpo enrodilhado
e suspiramos fundo, três vezes,
enquanto a noite assobia detrás das colinas
o requiem do eclipse total do dia
e lentamente se fecham
os portões verdes do manicómio.
A rigidez fria dos ponteiros, obriga-nos
a uma nova travessia no trapézio sem rede
como a ave que arrasta a asa partida
deixando seu lamento de papel
nas garras do alcatrão abrasivo
e voltamos como se nada tivesse acontecido
ao ninho donde saímos pela manhã
lavadinhos e perfumados.

Antes de fechar os olhos
e nos entregarmos a um sono sobressaltado
com o coração entalado entre os lençóis
oramos um credo sem nome
a um deus que não sabemos se nos escuta
e rebobinamos de novo a fita
para amanhã assistir ao mesmo filme.


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domingo, 5 de fevereiro de 2012

O bicho da folha


A lagarta deslizou sobre a folha
com um apetite de sílabas tenras
arrastando o corpo disforme
tudo devorando à passagem.
Suspensa nos troncos finos do poema
sugou a seiva que sustinha as estrofes
empanturrou-se com os mais suculentos versos
arrotou a baba de todas as rimas
e só deixou palavras descarnadas
nas mãos lambidas do poeta.


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sábado, 28 de janeiro de 2012

Cupido adormecido


Exausto de tecer as secretas paixões
que o destino baralha constantemente
com mão ciumenta e enrugada
o pequeno cupido pousa o arco
e as flechas de ponta aguçada
com que atiça o desejo dos amantes
e deixa-se afundar num sono profundo
sonhando com a eternidade do amor.


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sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Infância adiada



as crianças sentam-se no banco
onde não tem jardim
a brincar com o verde
onde não corre a esperança
na manhã que desperta
onde não brilha o sol
num lugar de encruzilhadas
onde não existem caminhos
num sonho de asas inchadas

onde já não há crianças


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sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Persistência da memória


Os ponteiros parados
numa baça vigília
marcam a réstia estéril
de uma febre de encruzilhadas;
a visão de um lume antigo
no fundo negro da tela
a diluir-se na erosão dos equinócios
e na abstrata paisagem
onde o vazio embala
a herança errante
da transparência corroída das manhãs.

A voz de uma ressaca anónima
num horizonte de espelhos enrugados
tece o sono vago dos dias
acorrentados a um corredor de névoas
num exercício de obscuros ócios
mastigando a insónia lenta do tempo
no estertor nostálgico
e persistente da memória

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sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Secreta respiração dos amantes


Entre os véus de fumo aveludado
que tecem o cristal dos aromas noturnos
mãos enlaçadas num suor de luzes escondidas
procuram a sedução proibida dos corpos
nas camas de cascalho e plumas
onde a explosão de lava dormente
cresce nos lábios derretidos do vulcão.

Nos tetos suspensos do luar
um roçar de asas estendidas
acende um fogo de leques transparentes
a queimar o incenso de línguas rasgadas
num ritual de secretos desejos
por detrás das portas onde pulsa
o clamor febril das fogueiras.

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