quinta-feira, 14 de julho de 2011

Férias


Embora se diga que os poetas não necessitam de férias, pois a única coisa que fazem é passar para o papel aquilo que sua voz interior lhes dita, vive em mim um operário, que todas as manhãs se levanta cedo e todo o ano labuta para sustentar o poeta (e a sua prole de insaciáveis roedores), e esse tem direito a uns dias, poucos que sejam, para retemperar forças e se libertar das amarras que o prendem à forja incandescente da rotina; da qual o poeta tem mil e uma artimanhas para se furtar, mas o pobre operário não.
Sendo assim, vou de férias, e não poderei estar aqui na vossa companhia, que enche de luz o ego faminto do poeta e lhe dá o alento que precisa para continuar a tecer a teia que o torna imune àquilo que atormenta o operário.
Voltarei em agosto, com palavras novas, se até lá o poeta não se deixar levar pela ociosidade do sol e o embalar das ondas na rebentação lenta dos dias. Sim, porque as férias são só para o operário…
Deixo-vos com um pequeno poema escrito o ano passado, mais ou menos por esta altura, desejando profundamente que fiquem em paz e não se esqueçam de aqui voltar, também, quando agosto trouxer a espuma branca das novas marés.

Um grande abraço


FÉRIAS

Vou fugir
pelos atalhos do sol
num cavalo provisório
com asas de andorinha
e alma de ventania

Vou voar
fora de horas
sem esperar pelas manhãs
nem mostrar identificação
sempre que precisar cruzar
o portal branco das marés

Nos campos secretos do verão
enterro no sal das areias
a rotina turva da gaiola
e as feridas de árduas batalhas

reclamando a minha parcela de liberdade


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sábado, 9 de julho de 2011

Normopatia


O mundo está cheio de gente resignada
vivendo um sonho de ovelhas dementes;
cartas sem valor de um baralho viciado
na dormência profunda de uma abstração.
Imolados num banquete de feras,
continuamos a engordar o repasto
de alucinados reis e rainhas
de um futuro que nunca existiu.
Aceitamos a carícia mórbida do chicote
como se fosse um beijo divino,
achando que é a ira profunda do Senhor
a castigar nossa imperfeição.
Aceitamos o espólio desta miséria
e a mingua diária de uma ração faminta,
ruminando em silêncio
o gosto azedo de um grito entalado.
Lambendo o pus das feridas velhas
e a inércia de um medo genético,
afundamo-nos no coração do esterco,
à espera que os céus se rasguem
e um braço salvador nos estenda a mão.

De quando em vez, balimos baixinho,
reclamando da sorte.

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terça-feira, 5 de julho de 2011

Além mar (a descoberta do Brasil) *



Gaivotas de vento ancoradas num litoral de búzios
sopram ecos de um céu azul e esvoaçante
que se confunde com as algas esverdeadas do teu corpo
na linha transversal do horizonte profundo,
no além mar do oceano que nos separa.

Enlaça-me no anzol de espuma das marés
com a fúria tempestuosa de todas as bússolas,
liberta-me das amarras de pedra da lonjura,
resgatando ao fogo o desejo que incendeia
o vidro baço das margens tatuadas do teu olhar
no êxodo das grandes aves de coral a desaguar
no estuário de luz dos meus lábios navegantes.

Sussurra-me todas as caravelas da tua respiração
no dorso soalheiro dos areais perfumados,
revela-me todas as rotas impossíveis
para chegar às dunas esquecidas do teu peito,
ensina-me o caminho salgado das ondas
e a secreta cartografia que me faça naufragar
na transparente rebentação dos teus desejos.

Leva-me pela mão através do voo rasante das vagas
e do canto de farol das sereias aprisionadas
numa ausência de rochedos por transpor,
a sul de todos os mapas por descobrir,
no rasto arcano das conchas famintas
onde guardas o sal de todas as conquistas.


* Poema dedicado à amiga Reinadi Sampaio (http://sonetosedelirios.blogspot.com/)
por me ter lançado este desafio e feito redescobrir o Brasil.
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sábado, 2 de julho de 2011

Imolámos um deus


Aquele que era esperado já chegou.
A estrela da manhã sopra a boa nova
nas asas radiantes do vento.
Concretizou-se o sonho de remotas gerações,
a promessa antiga dos profetas,
a derradeira esperança de sedentos e famintos.
Envolta na brancura do linho
chegou a luz que atravessou os desertos
para vir iluminar a escuridão;
aquele vem acender o fogo esquecido
e rasgar as mortalhas do frio,
com o sopro da verdade
e o calor que irradia.
Já chegou o pastor dos rebanhos tresmalhados,
a redenção das tribos dispersas,
abrindo novos caminhos no horizonte.

Rejubilam os céus num clamor infinito
que sacode a fragilidade pestilenta dos tronos.
De todo o lado se erguem multidões.
Dos desertos e das montanhas distantes
onde ecoou o rumor da sua chegada
um coro de oprimidos se agita,
uma nuvem de gentes ofegante
que galga as margens do rio,
num turbilhão de almas doentes
buscando curas e milagres.
Todos o querem ver.
Cegos, coxos e dementes,
leprosos e paralíticos,
toda a escumalha andrajosa e renegada
se dobra à sua passagem
abrindo os braços para o receber.
E a todos ele sacia,
distribuindo bênçãos e conforto,
repartindo o pão, o vinho
e a luz serena da sua glória.
Unge pecadores e réprobos,
devolve a visão aos cegos
e o andar aos paralíticos e entrevados,
resgata a vida aos que definham
nos braços de terra da morte,
apelando a uma força interior
que os homens ainda desconhecem.

Já chegou o enviado das alturas,
o Deus vivo da redenção,
o poema que lápis algum escreveu.
E nós, incapazes de conjugar o verbo amar,
enfeitiçados pelo mármore dos falsos deuses,
fariseus da ignorância e do egoísmo,
tudo aquilo que temos para o coroar
é o fel amargo e denso do nosso desdém,
o escárnio profano de um chicote de trevas
e a imolação num patíbulo sangrento.


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