domingo, 29 de maio de 2011

Lenda do cavaleiro perdido


Dobrando as falésias brancas
de um tempo que se esgotou
num círculo de crepúsculos encandeados
um cavaleiro sem rumo,
montado no dorso da distância,
erra por entre as vastidões de névoa
procurando um caminho que não existe.
Ao longo das margens perdidas
de uma terra de ninguém,
apressa seu corcel exausto
com a pressa de chegar ainda
a um futuro para sempre adiado.

A saliva ensanguentada das marés
tingindo as chagas de um areal obscuro
empurra-o para um labirinto de dunas
onde o canto lamurioso das aves do poente,
traçando estranhos presságios no horizonte,
anuncia a impossibilidade de um prometido retorno.
A manhã fecha-se,
por entre sombras e miragens,
ferida pela ausência do sol
e o encolher de ombros dos deuses,
ocultando todos os caminhos
ao cavaleiro que cavalga sem destino
no perpétuo e cerrado nevoeiro
onde eternamente se perdeu
sem encontrar ventos favoráveis.

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quarta-feira, 25 de maio de 2011

Até que a luz nos resgate


Vivemos dentro de um pesadelo antigo
sonhado por mentes perversas.
Uma teia disforme e negra
tecida com fios de sangue e escuridão.
Vivemos no ventre tumular de uma mentira
que nos suga a alma mirrada
e nos arrasta, em hipnótico transe,
até ao centro profano do labirinto.

Cativos do pecado e da iludida glória
de estranhos deuses de aluguer,
batemos os trilhos enferrujados da sombra
onde toda a esperança se afunda
num disforme gemido de poeira e ruínas.
Tudo aquilo que aprendemos,
e que nunca trouxe consolo nem alivio,
afoga-se agora no coração estagnado da lama
e nas pontes que desabam na boca do abismo.

De olhos cerrados, dormimos este sono falso,
sonhamos a angústia deste exílio decadente,
numa cega peregrinação pelo colapso da fé,
até à chama extinta da encruzilhada,
onde, em resignado silêncio, uma voz esquecida
entoa a melodia aprisionada das manhãs;
farol de esperança que nos há-de guiar
para fora desta tumba sombria,
quando a noite se devorar a si própria,
num agonizante estertor de espanto,
e, rasgando a mortalha de trevas,
a luz do novo dia nos vier resgatar.

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quinta-feira, 19 de maio de 2011

Luz derradeira


Tenho ainda guardado
num recanto invicto do peito
cinco minutos de uma luz branca
que nunca usei,
como um fogo de último recurso,
que irei acender
quando a névoa me cercar
com as unhas gretadas da cegueira
e por detrás da porta
os dias mirrarem
na treva inerte
do fim dos caminhos.

Não quero partir
sem ver para onde me levam.

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sábado, 14 de maio de 2011

Depois da tempestade


Que memória restará do clarão branco
do relâmpago que acende a imensidão nocturna
quando a voz cega do trovão
rugir sobre o dorso sombrio das colinas?

E das águas que caem em bátegas possessas
saciando a sede profunda das valetas,
que recordações sobrarão pela manhã
quando o sol se incendiar num aforismo de luz?

Gastei todas as vidas a atravessar pontes
só para ver se me esperavas do outro lado do rio.
Com que mãos vou agora agarrar a eternidade
sabendo que nada restará da transparência do teu rosto
depois de passar o cortejo fúnebre da tempestade?

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domingo, 8 de maio de 2011

A voz da infância


Há uma voz que me chama
do sótão obscuro da noite
onde escondi a memória
que se despenhou numa curva do tempo.
Como um grito de aves moribundas
sacudindo o luto dos ossos
rumina as sílabas frias do meu nome
num eco ferrugento
que roça o estuque baço das paredes.

Quando lhe pergunto o que me quer
e porque razão me vem atormentar
com a recordação de dias esquecidos,
a voz detém-se,
refugiada num gemido de sombras gastas
e não me responde.
Lesta, desce as paredes enrugadas,
serpenteando no soalho flutuante
até se perder no esconso dos caminhos
ao fundo de antigos corredores
numa lonjura de portas mal fechadas.

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terça-feira, 3 de maio de 2011

Presságio de chuva



Com um véu de cinza sobre os ombros
chegam as sombras turvas do pranto.

Os cães do vento farejam o frio dos becos
onde se escondem, lambendo feridas antigas.

As pálpebras do sol fecham-se, num bater de portas
que cega a luz clandestina do dia

e um ritual de úlceras solitárias rasga
a monotonia dolente dos horizontes cercados.


Lentamente, a tristeza dobra as esquinas da manhã
no canto de chuva do amolador de facas.

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