quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Numa varanda do labirinto


Sentei-me numa varanda do labirinto,
a ver a noite desfiar um rosário de sombras vagas
e a arrastar no assoalho dos céus
o vestido rasgado pelas mãos sujas da ventania.
É meia noite e chove.
Espreitando entre véus de algodão pardo
a Lua devora um naco de escuridão.
Um cutelo de água fria, esventra
o corpo adormecido da calçada.
Repetidamente o esfaqueia, até se cansar,
e, num ápice, se transforma num lençol transparente.

Um caranguejo de lama, vagueia pelas esquinas,
batendo a todas as portas.
Num enregelado delírio,
palmilha os rochedos de alcatrão,
espirra nas margens de uma sarjeta,
e vai desovar no seio das vielas.
Ao longe, um rumor de vozes fervilha,
como inquieto lamento de mil tambores.
E eu, aqui, numa varanda do labirinto,
hesitante, entre esperar o amanhecer
ou me render aos fantasmas do sono.






poema escrito 2008-09-18

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Insónia profana



No silêncio das noites de insónia
vultos febris rondam
as areias remotas dos desertos
soterrados dentro de mim.
Salteadores sem rosto nem identidade
envoltos em turbantes de poeira
vêm, à luz de velhas tochas,
pilhar os túmulos arrefecidos da memória.

Acampam em tendas de ventania
nos vales extintos do passado;
batem com as picaretas no solo,
enfiam as pás nas fendas esconsas
e escavam, revolvem, profanam
as riquezas e misérias deste templo,
trazendo à luz anónima do luar
aquilo que estava destinado à escuridão
e às sepulturas eternas do esquecimento.






poema escrito em 2010-08-04

Sonho de poeta


Vive dentro de mim
uma voz que me sussurra
estes versos que reinvento
no coração das horas solitárias.
Uma voz sem idade nem rosto
que me guia os dedos trémulos
pelos labirintos de papel
onde desenho o movimento do mar
e as cores do poema,
como um barco de fumo
que passa sob a ponte invisível
cruzando as margens distantes
de um imenso e descampado rio.

Não sei a quem pertence
esta voz rouca que me habita
e me enche os pensamentos
com o ritmo sufocante
de um ardente respirar.
Um sotaque de ventania
a assobiar dentro das sílabas;
o pulsar ofegante de um desejo
que me impele constantemente
a arranhar a face lisa desta folha,
numa busca cega pelo equilíbrio
de um punhado de palavras
que talvez ninguém vá ler.

Dentro de mim,
nas janelas abertas deste túmulo,
vive o sonho de um poeta.






poema escrito em 2010-08-02

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Hora de partir



São horas de partir.

O sol dobra já as colinas do poente.
Os relógios marcam o tempo de dizer adeus.
Faz as malas e despede-te,
como quem se precipita das inadiáveis alturas
de um solitário pontão.

A casa fervilha de inquietas sombras.
Acendem-se lâmpadas frias no cais cinzento.
Os últimos ventos
dançam na penumbra das camas desfeitas.
É tarde para sonhar.

Azedam as horas no lume brando dos ponteiros.
Rangem dobradiças velhas na ferrugem dos portões
que se abatem sobre as rugas de um fôlego derradeiro.
São horas de partir.

O tempo não espera por ninguém.






poema escrito em 2010-08-01

Último capitulo



Meu pai morreu!

Numa fria manhã,
num anónimo dia de Inverno,
o gongo soou,
estridente,
e ele, recolhendo sua bagagem,
partiu,
sem rebuliço, nem lamentações.

Por mais de sete décadas,
com grande tenacidade, resistiu,
a ventos adversos
e aos sombrios desígnios da tormenta,
sem se afastar da rota traçada
nem ceder
ao sibilar encantado das serpentes emboscadas.

Atravessou rios e mares,
lutou, nadou e esbracejou,
e agora,
que o peso da matéria se tornara
a cada dia mais insustentável
e seu espírito extenuado
por longo e penoso cativeiro
não mais podia suster o fôlego
e a ânsia de rasgar novos horizontes,
com inabalável fé se entregou
à brisa da manhã que despontava,
aliviado dos anos e das dores.


Meu pai morreu!

Mais que o extinguir de uma chama,
é uma nova luz que se acende
na treva do seu caminho,
uma página que o vento virou,
e um capitulo mais que findou
de sua eterna história.
Último capitulo de um pequeno livro
e, ao mesmo tempo,
novo capitulo de um novo livro.



poema escrito em 2003-07-16

domingo, 26 de setembro de 2010

Tela mística

Poema inspirado na tela, acima, da artista plástica
Florbella (Reinadi Samapio), pintada apenas com
o dedo indicador, em óleo sobre tela.


Queria pintar uma tela onde te louvar
Sem pincéis, tinta, ou outro material
Só com a luz serena do teu olhar
A colorir uma paisagem intemporal

Queria acender um sol perfumado
Que reflectisse teu sorriso radiante
E projectá-lo num céu exaltado
A iluminar meu horizonte distante

Queria desenhar o mar profundo
À sombra dos teus braços abertos
E o amor que derramas no mundo
Num cenário de anjos despertos

E como a gaivota liberta de medos
Em que na tela me irei transformar
Voar sobre o cume dos rochedos
E no coração da tua luz mergulhar






poema escrito em 2010-09-26

Espíritos mortos

 

Abrem-se os túmulos
e de suas profundezas seladas
rasgando as mortalhas
emergem os espíritos mortos

Furtando-se à vaga escuridão
dos eternos sonhos errantes
voltam do silêncio do sepulcro
e sem lugar onde repousar
vagueiam de candeias acesas
na noite parda da nossa memória



poema escrito em 1988-03-15

sábado, 25 de setembro de 2010

No gelo da vidraça



Algemada aos caixilhos da janela cerrada,
Estendes o azul crucificado do teu olhar
Na direcção da chuva que cai estrangulada,
Afogando a luz lamacenta de um sórdido luar.

Como um barco ancorado num cais sombrio,
Vês a vida esvoaçar nos varais da maré, lá fora;
Miragem que naufraga nas águas de um vazio
E no errante exílio desse sonho que demora.

Um triste abismo cerca as falésias desse miradouro
Onde invocas a dor de uma ausência que te cega
E, o alento, em apagadas cinzas se desagrega.

Derramando o dolente veludo do teu choro,
Embalas o grito da saudade que te abraça,
Desenhando corações partidos no gelo da vidraça.



poema escrito em 2010-05-04

Um lugar para enterrar o coração


Quando duas pessoas se amam,
quase sempre uma delas está enganada!

Que pensará a outra do amor,
quando esta descobrir o erro
e lhe cravar as garras no peito?

Continuará a crer no amor
ou, profundamente ferida,
buscará na solidão
um lugar para enterrar o coração?



poema escrito em 1992-01-19

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Movimento migratório


Dizer outra vez que te quero,
talvez solucionasse o problema,
mas retenho ainda o receio
que o eco repetido da tua resposta
me persiga dentro da noite,
com um chicote de catafonias
a castigar os flancos desta ilusão.

E nada digo.


Desenho um coração esbatido,
com o silêncio dormente dos meus lábios,
à espera que abras as janelas
e respires o pólen destes versos,
antes que o vento se revolte
e te martele furiosamente no peito
o desejo atroz de abrir asas
e voar, de novo, para além do sonho.



poema escrito em 2010-08-24

Não sou quem tu vês



Eu não sou quem tu vês
e meu rosto não fala por mim.
Procura dentro de mim,
aquilo que está escondido,
aquilo que teus olhos não vêem
e teu coração não percebe.
Procura dentro de mim,
o sonho e a fantasia,
a beleza e o amor,
o que arduamente persegues,
porque eu não sou quem tu vês
nem meu rosto fala por mim.



poema escrito em 1990-09-26

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Uivos do vento



As crianças não se deixam iludir
pelo canto mórbido das primeiras águas do inverno.

Rasgando o aço de uma cinzenta apatia,
atravessam o frio que cerca as manhãs,
enfiam os pés nas poças da lama,
oferecem o corpo às setas da chuva
e uivam, bem alto, o hálito branco da revolta.



poema escrito em 2010-09-01

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Cegueira



Numa inércia de condenados, mergulhei
nas águas profundas de um lamento, à espera
que a humidade da noite lavasse o pus das feridas
e o rasto vagaroso dos dias
apagasse a serapilheira da tua sombra renitente,
que insistia em assobiar nas janelas,
como um murmúrio de pássaros negros.

Bebi a dor nas águas inquinadas do fundo do poço,
onde não chega o cântico das manhãs
e as folhas arrancadas pela fúria do outono
ensopam a luz dos sonhos derramados.

Com o suor azedo dos meus versos
cimentei as fendas rasgadas no peito,
por onde me invadiam as heras da solidão,
nas noites em que recordo teu perfume distante.
Lentamente, resgatei o corpo e a alma
à viuvez selada do meu coração.
Mas continuo cego. Sem nada ver.

Feitiço algum me devolve a luz do olhar,
após ter sido contaminado pelo clarão do teu rosto.



poema escrito em 2010-09-02

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Ba(da)lada do tempo



Ao soar a meia-noite
Esguicha o sangue das horas
Nos espelhos que se quebram
Ao toque frio das esporas

Braceletes de fumo baço
Estendem-se para lá do poente
Num tempo que já não é passado
E que ainda não é presente

Ao soar a meia-noite
Demónios saem do abismo
Trazem injectadas nos olhos
Marcas brancas de sonambulismo

O tempo entra em colapso
E se afunda num charco de lodo
Lamento apunhalado da presa
A estrebuchar nos braços do engodo

Ao soar a meia-noite
Sussurra o vento nas janelas
E as sombras tatuadas do medo
Andam descalças nas vielas

Não é tarde nem é cedo
No fundo do poço dormente
Fronteira entre o que foi passado
E o que aspira ser presente

Ao soar a meia-noite
Levanta-se o véu da rotina
Mãos erguidas acima dos punhos
Em densas espirais de nicotina

Doze pancadas na porta
Selam um segredo clandestino
Grito rouco que se acende
No orgasmo pálido do destino

Ao soar a meia-noite
Ardem as horas no lume
E a penúria vaga dos ponteiros
Deposita raízes no estrume

No ventre prenhe da madrugada
Cresce o corpo embuçado
Do tempo que ainda não é presente
E nunca será passado

Ao soar a meia-noite
Tombam anjos no labirinto
Pétalas murchas que fenecem
Em turvos jardins de absinto

Nos relógios sem freio
Cavalga a silhueta vazia
Do tempo que não pode esperar mais
E ameaça rasgar o dia

Ao soar a meia-noite
Não há passado nem presente


Declamado pela poetisa Reinadi Sampaio


poema escrito em 2010-06-27

O regresso do amor



O amor não morreu!
Moribundo e frio,
arrasta-se na penumbra,
com o corpo em chagas
e a alma a sangrar.

Resistiu à tormenta
e à ira sinistra das vagas,
boiando nas águas gélidas,
como um naufrago solitário,
ao sabor de ventos e marés.

Agora, que o sol se levanta,
rompendo os ferrolhos da escuridão
e os exércitos do vento
libertam os corações cativos,
é tempo dele regressar,
porque se esconde dentro de nós
e não morreu ainda,
porque vem do eterno
e eterno é,
e será...


poema escrito em 1999-04-25

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Polaridade invertida


O olhar perdido na sombra do alpendre
bebe o pouco que resta, da luz estagnada
no estuque arruinado dos muros
e na terracota de longínquas memórias,
onde um eco de vozes sussurrantes
entoa a cantiga esquecida dos ventos.

Os pássaros sombrios do outono
desceram as colinas do teu corpo enrugado
onde o alento mirra, em cada folha que cai,
em cada novo dia que te desfolha,
na tristeza do musgo que trepa a pedra fria
nos últimos degraus do crepúsculo.

Vencida pelos limites vagos do futuro,
refugias-te nas varandas do passado,
e descobres que há um tempo na vida
em que a polaridade dos sonhos se inverte,
e a ilusão caduca dos dias vindouros
reverte àquelas manhãs antigas, em que
o sol dançava na linha morna do horizonte.



poema escrito em 2010-09-20

Quando o pó me reclamar



Quando a noite chegar
depois do alento esgotado
e meu corpo alquebrado
não mais puder caminhar,

imóvel, me estenderei
em torno de triste pranto,
e de negro me cobrirei
com meu melhor manto.

Quando meu olhar gasto
se entregar à escuridão
e minhas entranhas em ebulição
alimentarem o macabro repasto,
chegará a hora de escapar
embalado nas asas do vento,
sem nada levar,
tudo deixando ao esquecimento.


Quando todo o meu legado
se inflamar no braseiro da fornalha
e esconderem meu rosto estragado
no alvor rendado da mortalha,
esconsas asas abrirei
e para longe partirei,
doando meu ossário sombrio
a um qualquer terreno baldio.



poema escrito em 2007-05-07

domingo, 19 de setembro de 2010

Se a vida não tivesse dado tantas voltas



Não faço ideia o que poderíamos ser hoje
se fossem outros os caminhos percorridos;
se não tivéssemos vacilado ante os limites do mar
enterrados no lodo estagnado da vazante;
se tivéssemos rasgado os manuais do bom senso
e saltado sobre aquilo que se nos atravessou no caminho;
se tivéssemos traçado a chama de uma vela
quando subitamente todas as luzes se apagaram
e a escuridão nos devorou os passos;
se tivéssemos atravessado o caudal do rio
e tentado no desconhecido da outra margem
aquilo que não fizemos hoje e deixámos para outro dia.

Não sei o que realmente poderíamos ter sido
se a vida não tivesse dado tantas voltas.


poema escrito em 2010-09-10

Ascensão



Quando a morte se apodera dum corpo,
levando-lhe a carne e os ossos
para a escuridão profunda e esconsa
dos abismos da terra;
sua alma,
recuperando a liberdade de movimentos,
ergue-se acima da atmosfera viciada
deste imenso purgatório,
reúne os ensinamentos
colhidos nos trilhos acidentados
e sobe um degrau mais
na escadaria que, um dia,
a levará de volta ao coração do eterno.



poema escrito em 1992-02-23

sábado, 18 de setembro de 2010

Dia de todas as noites



Hoje é o dia em que te despedes
dos exíguos labirintos do destino
e dos gastos versos sem rima
de uma ilusão envelhecida.
Envolto no manto negro
que te cobre as chagas do corpo,
mergulhas num crepúsculo de cinzas
que lentamente devoram tua imagem
nos espelhos cegos do infinito.

O grito do silêncio ecoa ainda
na névoa da manhã estrangulada,
murmúrio de pedra fria
sobre a mordaça do mármore desvanecido,
onde ruidosamente desabam
frágeis alicerces de bruma
e os solitários sonhos que ergueste
no areal negro dos dias,
com o suor amargo de sangue espesso.

Lágrimas doentes te acompanham
à soleira adormecida do abismo,
ecos distantes de um adeus
plantado na frigidez dos ossos.
Hoje é o dia em que te despedes
do esplendor inacabado de uma quimera.



poema escrito em 2010-06-03

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Depuração



Muitas vezes já morri nesta vida.
Muitos corpos já enterrei, dentro de mim.
E sempre renasci, do próprio sangue,
das cinzas e dos véus das mortalhas,
num outro eu, a cada morte revigorado.



poema escrito em 2009-04-04

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sina




Carrego o corpo dormente daquilo que fui
na memória penosa de passos arrastados,
buscando na erosão prolongada dos dias
o fio débil do meu destino suspenso,
traçado a giz no compêndio dos astros.
Nenhuma certeza habita meus pensamentos.
Perdi-me algures, naquilo que nunca fui,
incapaz de ser aquilo que me penso
ou o que em delirantes sonhos concebo
na inércia pardacenta de velhos muros.

Uma vertigem de caminhos enredados
leva-me ao dédalo angustiante das noites
que me afastam dos portos da infância,
onde bebo o espólio das quimeras vencidas,
envolto no assombro do nada que me cerca.
O mistério insolúvel da minha identidade
não mo revela o oráculo divino dos ventos,
nem os lábios arrefecidos da esfinge se movem
se lhe pergunto porque me tremem os dedos
quando escrevo sobre o que não aconteceu ainda.

O que serei amanhã, que hoje não sou?
O que deixarei nas margens do incerto
quando o entardecer bater com a porta
levando a luz subtraída ao pó das manhãs?
Trará o futuro algum sonho por reclamar,
ou apenas me aguarda o clamor da alma
ruindo no marasmo da ultima escuridão?
Todas as dúvidas me condenam ao vazio
e ao caminho ermo, que não me devolve
o sentido perdido, lá longe, no dia em que cresci.

Onde me retornará minha sina difusa
quando se esgotarem todos os caminhos
destas linhas cruzadas do destino
no suor enrugado da palma das mãos?


poema escrito em 2010-09-16

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Coração cativo



Vivo aqui escondido
Num buraco escavado na lama
A espreitar pelas grades do postigo
A ilusão que ao longe me chama

Vivo aqui esquecido
Nesta tumba de solidão
À espera que o sonho arrefecido
Me liberte da tua recordação


poema escrito em 2008-04-05

A caminho da Escola


Subitamente, perdi-me numa curva do caminho,
confundido pela sombra cega dos becos
e o empedrado corroído da memória.
Sem saber como, nem porquê,
vejo-me de novo de bata branca lavada
e mochila apinhada de livros, às costas,
nos caminhos primários que me levam à escola.

Um remoinho de ventania e poeira
atira-me para próximo da casa de partida,
como um peão castigado pelos dados
numa estranha reprise do jogo da glória,
devolvendo-me tudo o que estava adormecido,
excepto, a luz das manhãs que já não existem
e o sorriso inocente do meu rosto de criança.


poema escrito em 2010-08-28

Eterno




O tempo esgotou-se, num abraço de névoa
que te gela a palidez escancarada da face.
A luz efémera que cobria teu vulto esmaltado
dilui-se no frémito que percorre o corpo corrompido.
Um canto lamurioso e derradeiro
acolhe os despojos de teu definitivo cansaço
que se mistura com as raízes ensanguentadas da terra,
recolhendo à matriz do silêncio que te gerou.

Envolto na cegueira desse abismo desperto,
atravessas os jardins de um horizonte fechado,
onde um giz de cinza risca na ardósia do crepúsculo
os traços difusos da sombra que um dia foste
e a lamúria do luar espanta os pássaros de musgo
entre o vazio eterno dos teus dedos.


poema escrito em 2010-09-02

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Silêncio



É no silêncio que me encontro,
quando me escondo da face do mundo,
encolhido
dentro dos ossos frios do pensamento.
Lentamente, deixo cair a máscara
que me protege dos olhares furtivos
e esconde as cicatrizes acumuladas
desta ininterrupta maré de lama
que vem na enxurrada inútil dos dias,
e deixo-me levar pela corrente,
à deriva por entre os destroços.

Ninguém conhece os segredos que me habitam
nem o que pulsa neste coração ferido.
Ninguém vê o arrepio que se entranha na carne frágil
quando me debruço sobre a própria sombra.
Ninguém me vê quando choro.

Às escuras,
dentro de mim,
sigo as sombras ofegantes
que me enlaçam pela cintura,
traçando círculos de gelo
nas colinas fustigadas do meu peito.
E choro.
Levo as mãos ao rosto,
manchado,
bebendo as lágrimas perdidas
desta esponja ensopada em vinagre,
e encolho-me,
mais fundo ainda,
dentro da dor que pinto ao vento
com os ensanguentados versos
destes dedos vazios.

Pouso a caneta, por momentos,
acendo um cigarro
e recosto a cabeça.
Fecho os olhos
e continuo a chorar.
Em silêncio.

Só eu sei porquê.


poema escrito em 2010-08-02

domingo, 12 de setembro de 2010

Reinadi Sampaio – Acróstico da amizade

R aros são os momentos
E m que os céus se curvam
 I nchados de morna glória.
N a vastidão de um sorriso,
A  ânfora transborda de dádivas;
D oce tilintar de anjos
 I luminando o sorriso das manhãs.

S obre os trilhos da distância
A cendes a ilusão dos sonhos,
M agia que rasga oceanos,
 P ercorrendo as águas ocultas,
A travessando o gelo do vazio,
 I nundando com vagas de alento
O  cais deserto dos náufragos.

 
poema escrito em 2010-09-12

Entre a sombra e a luz



Entre a sombra e a luz te moves,
como o vento nas árvores,
chegando e partindo.
Entre a sombra e a luz,
entrando e saindo,
flutuando deslizas,
entre os meus braços e o vazio...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Orçamento geral do estado




Soa-me a pérolas falsas
a cantiga matinal dos búzios
anunciando num sopro de vento
o retorno miraculoso dos navios.
Olho em redor e apenas vejo
a inquietação salgada das marés
a devolver às areias da praia
os vómitos contaminados da ondulação
e um rasto de conchas amputadas.

Numa vertigem de águas estagnadas,
o êxtase demagógico dos caranguejos,
no lodo da praia-mar,
anuncia um principio de nada,
uma cacofonia de algas mortas;
promessa sempre adiada
de um sol que nunca chega.

Sobre as tábuas velhas do pontão,
o temporal iminente
ergueu uma muralha de nuvens
fechando a cancela do horizonte.
As gaivotas, incapazes de alçar voo,
aninham-se no escuro
à volta de uma réstia de despojos
e a luz baça do farol
afunda-se numa noite de espuma,
junto às quilhas desmanteladas
dos barcos que enferrujam no cais,
sem sombra alguma de esplendor.

Mesmo que diga o contrário
a cantiga matinal dos búzios.


poema escrito em 2010-08-29

Sombras e lamentos


As árvores murmuram,
ninguém compreende o que dizem.

Mas elas sabem!

Só elas sabem!

Erguendo aos céus os braços
dançam sacudidas pelo vento
e choram seu segredo.


Só o vento
as pode entender.

Só o vento,
serpenteando em seus braços,
lhes pode responder.

Nada mais se move
nesta tumular desolação.

 
poema escrito em 1987-03-04

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Posso ser Eu


Posso ser quem eu quiser
nestas linhas que desenho
sentado a um canto
no silêncio dos dias
que galgam as margens do tempo.

Posso fugir do que sou
e inventar outra identidade.
Encarnar outras vidas,
assumir qualquer fantasma
em fuga pelos carreiros do labirinto.

Posso baralhar as emoções,
escolher as tintas e as paisagens,
pintar manhãs na escuridão
ou deixar as sombras fluírem.
A escolha é minha.

Posso ser quem quiser,
ou posso, simplesmente, ser eu.




Poema escrito em 2008, aqui com a voz, imaginação e talento de Reinadi Sampaio, uma amiga que guardo no coração.


poema escrito em 2008-03-22

Seguindo o escoar do tempo



Rodas dentadas
giram em agonia
aprisionadas a um eixo imaginário,
como ponteiros de relógio
num ruminar lento
à volta do tempo.

Rodas dentadas,
batendo umas nas outras,
incapazes de se libertarem
do próprio movimento gerado,
perpétua dor que arrastam,
num estranho chiar enferrujado
seguindo o escoar do tempo.


poema escrito em 2008-03-08
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