sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Jobs for the boys


As sombras marcadas com o selo dos eleitos
saíram dos covis incrustados na rocha
e caminharam sobre as cinzas do areal
com o tronco dobrado numa inércia ensaiada.
Traziam as mãos carregadas de oferendas
e uma ânsia de mastins esfaimados
na espessa baba que lhes corria dos cantos da boca.
Dos braços, sempre flácidos e pendentes,
crescera-lhes um emaranhado complexo de redes
com que aprisionavam os pequenos cardumes assustados
que depois vendiam às industrias de transformação.
Era assim que conquistavam o favor das ondas
e podiam atravessar, incólumes, o trilho das tormentas.
Imunes aos naufrágios, refugiavam-se nas fendas
e nas grutas escuras, escavadas na falésia,
atentos aos sinais e à mudança das correntes.

Quando os deuses se ergueram do fundo das águas
e começaram a repartir os despojos da maré,
rapidamente avançaram sobre a esteira de corais
e se desfizeram numa rebentação de vénias.

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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

No último verso de um poema de amor


O poeta adormeceu e finalmente teve um sonho,
onde o mar se abria, e das suas águas rasgadas
saía uma deusa iluminada por um farol de corais.
Com asas de borboleta azul, esvoaçava
à volta de uma fogueira arrefecida pelo frio,
como uma bailarina enfeitiçada pelo desejo
a dançar descalça sobre um chão de pedra,
com o corpo inclinado na direção do sol.
No ventre, trazia dois corações tatuados
envoltos numa grande bola de fogo,
que se incendiava sempre que ela se agachava
numa pose que fazia recuar as sombras.
Seus cabelos eram um véu longo e dourado
que ondulava quando o vento movia as ancas,
numa cadência que agitava o sono do poeta
e se parecia com a respiração ofegante do mar.
Sem saber que estava aprisionada ao sonho
dançava sem cessar, sacudindo a noite do rosto,
enquanto o luar lhe rebentava nas pupilas
despertando sua ancestral vocação de musa.

Quando a manhã lhe pousou sobre os ombros,
exausta, deixou cair na areia o corpo saciado,
à espera de ser imortalizada pelas mãos do poeta
no último verso de um poema de amor.


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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Reprise



Saímos de casa pela manhã
com ganas de devorar o dia
lavadinhos e perfumados
prontos para rebolar no lodo
que tolda o quotidiano dos caminhos.
Com a boca ainda ressequida
lambemos as últimas sombras da noite
e todas as esquinas do frio
antes de chegar ao café do costume
onde num ritual de asas enferrujadas
ingerimos o primeiro veneno do dia.
Entre duas baforadas no cigarro
e um tremor vago que sacode o corpo
trocamos o rosto ensonado
pelo disfarce insone que nos permite
agarrar o esplendor desabitado da vida
seguindo a linha desenhada nos passeios
com os pés a resvalar dos estribos.

Não é permitido gritar nem desviar o olhar
lemos nos cartazes coloridos
que anunciam em placardes gigantes
todo o esplendor da teia
enquanto transpomos o degrau já gasto
pela persistência mórbida dos passos
escondendo no bolso apertado das calças
as lágrimas que jurámos não derramar.
Fantasmas de uma dimensão sem idioma
despojamo-nos de tudo o que temos
para alimentar a sede de um cartão de crédito
que nos vai permitindo manter à tona
nas águas estagnadas donde nunca sairemos
lambendo a poalha inquinada das vagas
e o papel químico das manhãs
que reproduzem a repetição grosseira dos dias.
São precisas mais drogas agora
para continuar a desfiar o novelo.

À hora do almoço, como uma brisa refrescante,
uma pequena brecha se abre
no centro da arena onde nos perfilamos
como gladiadores condenados.
Uma inesperada trégua
para uma cola e uma sandes de atum
permite-nos retomar o fôlego e o alento
antes que o gemer sufocante das roldanas
retome sua cabala alucinada
arrastando-nos pelo suor dos cabelos
até aos limites esvaídos do dia
e o peso da grande roda cilíndrica
repetidamente nos volte a esmagar
como lagartas insignificantes.
Nenhuma estratégia nos vale agora.
Nenhuma droga pode suster
as foices afiadas da dor
que nos retalham a réstia de alento.

Sob o fogo extinto do crepúsculo
enxaguamos o sangue das feridas
sacudimos a poeira do corpo enrodilhado
e suspiramos fundo, três vezes,
enquanto a noite assobia detrás das colinas
o requiem do eclipse total do dia
e lentamente se fecham
os portões verdes do manicómio.
A rigidez fria dos ponteiros, obriga-nos
a uma nova travessia no trapézio sem rede
como a ave que arrasta a asa partida
deixando seu lamento de papel
nas garras do alcatrão abrasivo
e voltamos como se nada tivesse acontecido
ao ninho donde saímos pela manhã
lavadinhos e perfumados.

Antes de fechar os olhos
e nos entregarmos a um sono sobressaltado
com o coração entalado entre os lençóis
oramos um credo sem nome
a um deus que não sabemos se nos escuta
e rebobinamos de novo a fita
para amanhã assistir ao mesmo filme.


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domingo, 5 de fevereiro de 2012

O bicho da folha


A lagarta deslizou sobre a folha
com um apetite de sílabas tenras
arrastando o corpo disforme
tudo devorando à passagem.
Suspensa nos troncos finos do poema
sugou a seiva que sustinha as estrofes
empanturrou-se com os mais suculentos versos
arrotou a baba de todas as rimas
e só deixou palavras descarnadas
nas mãos lambidas do poeta.


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