sábado, 30 de abril de 2011

Filosofia de merceeiro


Ao fim do dia,
antes de fechar a loja,
o merceeiro debruça-se
sobre os caixotes de fruta
colhendo a fruta tocada,
separando-a da fruta boa,
para que esta
não seja contaminada
pela sua baba peçonhenta.

Ao contrário de Deus
que, nos caixotes do mundo,
teima
em misturar as almas tocadas
com as almas purificadas
para que estas se redimam
de suas impurezas
e possam de novo ser penduradas
na árvore da vida,
o merceeiro sabe
que o mesmo nunca acontecerá
com a fruta
que, uma vez contaminada,
jamais voltará a ser sã.

Por essa razão, todas as manhãs,
quando volta a estender
os caixotes de fruta no passeio,
apenas a fruta boa
é exposta
ao olhar cioso da clientela,
que nada quer saber
da improvável redenção
da fruta estragada.


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terça-feira, 26 de abril de 2011

Baralho do destino


Viro as cartas
sobre a mesa de imitação de cerejeira
procurando no oráculo profano
dos rostos de cartão
o rumo do meu destino enevoado.

Auscultando velhos enigmas
presos num recanto de névoa
espreito os caminhos do amanhã
nas portas entreabertas
de uma luz embaciada
onde um alvoroço de presságios
sacode o regaço sombrio dos naipes
quando pergunto a cor do futuro
à vidente cega dos baralhos.

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quinta-feira, 21 de abril de 2011

O estranho fascínio da guerra


Este é o território onde se arroja a serpente antiga.
A floresta obscura onde nascem os rios de sangue.
Aqui se molda o fogo que endurece os corações
e envenena o destino amaldiçoado das tribos.
Feiticeiros cegos enfeitam-se com as raízes do caos
e dançam no crepúsculo das encruzilhadas
atiçando o carvão do ódio primitivo.
Com cabeça de pássaro e disformes asas de cera
emergem dos quatro recantos da noite,
no eco dos tambores que propagam a dor,
obedecendo a um impulso de treva.
Nas cicatrizes de lama vermelha das clareiras
plantam os ninhos sombrios da desordem
onde fermentam os ovos das guerras futuras.

Rasgam-se os mapas e o alinhavo frágil das fronteiras.
Crescem rumores de um poente de cinzas
por entre a glória cancerosa dos mitos
e o ancestral rito dos ossos desfeitos.
Uma insólita névoa paira sobre as soleiras das casas
onde o luto desesperadamente procura abrigo.
Nas mãos inquietas dos homens
cresce a voz bélica do temporal
aguçando espadas no mármore das carnes rasgadas
e no dorso profano da ira febril
que carrega o pólen de antigas feridas
exalando um monólogo de vidas interrompidas.

Este é o território onde os deuses brincam
ao atribulado jogo do destino
e bebem, nas taças do barro velho,
o fel e o sangue fresco da cólera,
reclamando mais e mais sacrifícios.

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terça-feira, 19 de abril de 2011

MEME



Recebi da Mizia do blog Cantinho da mizia, um MEME para postar no meu blog. (MEME é uma palavra que vem de mimo, gentileza... uma forma de conhecer melhor o nosso amigo blogueiro).

As regras, para quem o recebe, são as seguintes:

1 - Indicar 10 blogs (ou mais) para o MEME;
2 - Avisar os indicados;
3 - Escrever e postar 10 coisas que você gosta;

10 coisas de que eu gosto:

  1 – Meus Filhos
  2 – Escrever
  3 – Ler
  4 – Conviver com os amigos
  5 – Meu Blog
  6 – Interagir com outros Blogs
  7 – Ouvir música
  8 – Recordar a infância
  9 – Ficar em casa no fim-de-semana
10 – Ver o Benfica


Os blogs que indico são (a ordem é aleatória):



sábado, 16 de abril de 2011

Sonhadores


Sem que ninguém saiba
vira costas ao cais cinzento
donde os barcos partem vazios
e chegam vergados pela tristeza dos viajantes.
Segue as margens nunca antes avistadas
que se perdem no estio das madrugadas
subindo os rios ocultos do amanhecer.
Nenhum mapa decifra os atalhos
que é preciso percorrer
sempre que nos desviamos da rota traçada.
Só as estrelas conhecem todos os sinais
que vestem as múltiplas cores do arco-íris.
Só os sonhos nos guiam
na cartografia dos novos caminhos.

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terça-feira, 12 de abril de 2011

Catarse


As casas dormem ainda
ensaiando um silêncio de morte improvisada.
Nas janelas fechadas
oculta-se um rumor de luzes estranguladas.
O fogo adormecido da quimera
envelhece sob um céu sem luar
junto à rebentação das sombras
onde decifro a solidão fria do inverno
no crepitar da memória incandescente.

Personagem de encruzilhada, busco
um elo que faça ainda sentido
com qualquer coisa conhecida,
enquanto assisto ao desgaste lento das horas
a cavarem um fosso de incertezas
no parapeito arruinado da esperança.
Respiro todos os segredos da escuridão
no mármore arruinado onde repousa
um silêncio de asas mortas
e o gemer surdo do sono adiado.


Ao fundo do corredor
no átrio vago da demora
range a porta da alvorada
a abrir-se para a claridade inesperada do dia.

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sábado, 9 de abril de 2011

O poema e a bailarina de plástico


O Poema e a Bailarina encontraram-se
na solidão de um quarto exíguo,
numa noite sem estrelas nem luar,
à luz de um velho candeeiro de porcelana.
Ele, vive no versos e sonetos rabiscados
de um inacabado livro de mesinha-de-cabeceira;
Ela, presa no mecanismo magnetizado
de uma caixa de madeira pintada à mão.

Ela deixou-se prender pelo ritmo dolente
das palavras ternas que ele lhe sussurra
e Ele, pelo seu corpo de plástico colorido
a rodopiar ao som de um piano metálico.
Incapazes de se libertarem daquele feitiço,
aguardam ansiosamente pela noite;
Ela, encerrada na escuridão da caixa fechada;
Ele, nas páginas vazias do livro por escrever.

Quando o poeta se entrega a si mesmo,
mergulhado na tela colorida dos sonhos,
e seu pincel traça cristalinas paisagens
sobre cavaletes de espuma e vento;
a magia, todas as noites renovada,
acende-se na penumbra sufocante do quarto
libertando os amantes acorrentados
às frias amarras de um estranho destino.
Ela, das profundezas de um camarim soterrado,
emerge, com seu vestido de seda branco
e um realejo de fantasias por satisfazer,
enchendo o quarto com arrebatadas danças.
Ele, abre asas e desliza nos céus de papel,
ao ritmo da melodia que rasga o silêncio
em exaltados versos que ganham vida,
imortalizando uma paixão impossível.


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quarta-feira, 6 de abril de 2011

No fundo das gavetas


Dou uma volta pelo fundo das gavetas
onde velhas palavras repousam
no pó amarrotado de folhas esquecidas

tinta seca de outros dias
na face por polir de versos rejeitados


Dou uma volta pela inspiração gasta
que geme na clausura do tempo
à procura de antigos sentimentos

qualquer coisa que faça renascer
a juvenil fantasia do teu rosto esbatido

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domingo, 3 de abril de 2011

Longa espera


Sentamo-nos hoje,
sobre o dia de ontem,
esperando o amanhã
que tarda em chegar.
A roda do tempo
correu todas as estações
e já é inverno de novo
no calendário das horas vagas.

Abrimos a janela
ao tempo estático
que se demora
nos relógios que nunca atrasam,
enquanto cresce a impaciência
no átrio da gare deserta
onde os dias derretem
numa vertigem de ponteiros.

À hora marcada,
passa num vagão fugaz,
a esperança que se esfuma
por entre os dedos encardidos.
Sentados sobre o dia de ontem,
exaustos de tanto esperar,
há muito já esquecemos
aquilo que nunca irá chegar.

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