sábado, 26 de fevereiro de 2011

Canção de escravos


Em redor do néon das fogueiras
uma roda de escravos petrificados
entoa os cânticos sombrios
de uma dor antiga e profunda

Num estranho dialecto de cinzas
voltando o rosto para o poente
sacodem a poalha das feridas
numa dança de sonhos acorrentados

implorando a clemência dos deuses

.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Parados no tempo



se fores apanhado
um dia
numa ratoeira do destino
não te deixes lá ficar
como um bicho inútil
à espera
que a morte te consuma

continua a debater-te
e a sacudir
o corpo preso

arranca uma asa
se esta ficar entalada

arranca as duas
se for preciso

deixa lá ficar a pele
e o sangue derramado
mas não pares de te debater

liberta-te
como puderes
e segue teu caminho


qualquer coisa
é melhor
que ficar
parado no tempo


.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Último voo


Recusas rever-te nos espelhos
onde já não te reconheces
e a sombra de uma metamorfose mórbida
se reflecte
como uma fotografia amachucada
que o pó lambeu
com o veneno enfeitiçado das noites.

De tanto crescer
o corpo mirrou por dentro
devorado
por um espasmo de primaveras corrompidas
e é, agora, apenas um sussurro de sémen,
um choro de criança moribunda
no quarto escuro da memória
onde não voltará a amanhecer.

O mapa enrugado das cidades perdidas
que te cobrem a cal cega da pele
é aquilo que te resta
de uma paisagem de luas adolescentes
que a sombra obscureceu
num eclipse de ossos doentes.

Agora, já só esperas o último voo.
O grande sono
que te levará num estertor alucinado
à cratera extinta onde repousa
a recordação febril das manhãs
e a luz branca de todos os mistérios.

.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Trabalho precário


Com as unhas ensanguentadas
a romper pelo frio dos dedos,
esgravato os rebordos da teia,
por entre os densos fios de névoa
que me vestem de cegueira,
carregando nas asas doentes
a ferrugem contaminada do futuro.
Nos dentes, retenho ainda
o azedo dos sonhos coagulados,
num febril restolhar de cinzas
por detrás da miragem dos biombos.

Um arrepio de incertezas faz estremecer
a invisibilidade dos meus passos
plantados nas areias que rangem
de encontro a um poente de águas estagnadas,
onde o indiferente sopro dos ventos
me atira para um confim de breu,
fechando as portas do sonho
num equívoco de espelhos trucidados.

Incapaz de me libertar
deste ritual de luas adiadas,
debico a réstia precária
de uma ilusão amordaçada,
agarro-me ao gemido dos náufragos,
dobrando o corpo num ranger de asas,
e me junto ao bando de aves cegas
que a maré expulsou de um horizonte de luz.

.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Rosto fechado


Guardo no silêncio obscuro das gavetas
os retratos da criança que um dia fui
retendo a imortalidade fugaz do meu rosto
como indelével prova para futura memória
de um canto breve no rumor errante do fogo.

Para que saibam que houve um tempo
em que me guiava o fulgor insólito das manhãs
e a luz das secretas primaveras por corromper;
mantenho as gavetas fechadas a sete chaves
para que o tempo não possa nelas entrar
e, de novo, faça dançar o vento doentio do outono
manchando o colorido sorriso do meu rosto infantil.
:

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Respira ainda dentro de mim


Respira ainda dentro de mim
uma réstia arrefecida de ti,
estranho epitáfio de folhas mortas
entre poeiras e cinza calcinada

Respira ainda dentro de mim
o clamor surdo do teu rosto,
sombras e defuntos fiapos
de um sonho que o vento cristalizou

Os ossos descarnados da quimera
arrefeceram, num charco de lamentos
e no prolongado gelo da tua ausência,
mas, na peneira triste da memória,
uma réstia sufocante de ti
respira ainda dentro de mim


_

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Para lá do fim da noite


Os olhos fecham-se
num cansaço de pálpebras feridas
quando teimo em escrever
para lá do fim da noite,
refém das palavras que não encontro
para desenhar estas asas
que me restam para fugir.

Com o sangue sujo dos versos
que o vento afaga com polegares de gelo
atravesso o vidro transparente
de um néon de lâminas oxidadas
em busca da sonolenta luz do dia
nos labirintos tingidos do papel
por onde regresso, ao final do poema.

_
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...