sábado, 20 de abril de 2013

Fim da viagem


Aproximas-te agora
do fim da viagem.
Pelo estremecer do carril
e da poeira que se levanta
cercando a paisagem
adivinha-se já
a luz baça da última gare.
Há um rumor de cinza
no freio que chia
anunciando o limiar do frio
e uma sombra cinzenta
que acena com o vento
lembrando os gestos definitivos
de uma despedida.

Na parca bagagem
trazes aquilo que te sobrou
dos sonhos que envelheceram
à espera que a noite se esgotasse:
algumas lembranças
marcadas a fogo
na carne enrugada da memória,
uma fatia de sol
trazida da longínqua infância
que ainda não se perdeu de todo,
e um sorriso traído
no olhar exausto
de tanto atravessar
a escuridão dos túneis.

Contemplas agora
o lugar vazio
de um súbito regresso
ao ponto de partida,
a derradeira imobilidade
que te vem resgatar
à fragilidade exausta
de um voo encalhado.
Sozinho no apeadeiro
a ver a noite partir
e a manhã que chega
branca e cintilante
a colorir-te os contornos do rosto,
até à transparência da luz

enquanto lentamente
te debruças
sobre as malas por desfazer.

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sábado, 13 de abril de 2013

Um milhão de vozes


Se uma voz se levantar de um fundo de névoa
sacudida pelo frémito impaciente da insónia
não será ainda um grito, mas tão só um lamento
uma fala virada para dentro de uma aragem estéril
qualquer coisa que se desmorona precocemente
sem nunca deixar de ser apenas um esboço

Se cem vozes se elevarem acima desta angústia
amadurecidas pela persistência cega do medo
não será ainda o princípio de uma metamorfose
nem o movimento de portas a bater na escuridão
mas somente a mágoa com que os lábios se fecham
num murmúrio que a noite rapidamente devora

Se mil vozes se erguerem numa abstração branca
como um aviso a irradiar a embriaguez algemada
ou o som de alguma coisa que lentamente começa
fizer estremecer a sombra transitória dos alicerces
ninguém poderá já suster o rumor que se expande
liberto da retórica que o silêncio esculpiu na pedra

Se um milhão de vozes se exaltar ao rés do poço
sacudindo o relento enroscado no frio dos ossos
e os ecos que o furor desse sopro irão prolongar
subitamente rasgar uma fenda no círculo fechado
de nada valerá às muralhas que então desabam
apertar mais e mais o abraço inquinado do cerco

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