sexta-feira, 30 de março de 2012

Abraça-me, mãe


Abraça-me, mãe
que acabei de chegar
do outro lado do túnel escuro
e não consigo ainda abrir os olhos
para desvendar a luz que me estendes.
Perdi as asas que tinha dentro de ti
quando de súbito se rasgou
aquele cordão que nos unia,
e tenho medo agora.

Ensina-me, mãe
a descobrir os caminhos por percorrer,
traça no chão de poeira
as fogueiras que sinalizam o horizonte,
tece o fio que irá guiar
a memória frágil dos meus passos
e o mistério das travessias por desvendar.
Sou ainda uma sombra clandestina
à procura de um novo lar.

Mostra-me, mãe
as cores novas deste sonho
que iremos sonhar acordados,
canta-me as doces melodias
que nunca ninguém cantou,
conta-me os segredos que não conheço
e as histórias que não vivi ainda,
afaga-me suavemente
com o tato perfumado dos teus dedos.
Tudo para mim
é um universo em expansão.

Embala, mãe
no teu colo de linho brando
este meu coração de papel
que bate impaciente
açoitado pelos ventos da madrugada,
sacia com o açúcar dos teus seios
esta sede que trago comigo,
este desejo de infinito,
esta sedução fugaz que me anestesia.
Dá-me uma razão para desafiar o futuro.

Protege-me, mãe
das grandes rodas do destino
que começaram já a girar
no roxo débil da minha carne,
acende com a luz do teu sorriso
os espelhos de prata do meu futuro.
Sou o barro que moldaste
na paciência demorada do teu ventre
para que a alquimia do sonho
se tornasse realidade.

Chego-me a ti, mãe
e lentamente me enrosco
no refugio quente dos teus braços
para que laves este corpo
ainda despido de tudo
com a água benta que transborda
do teu choro de felicidade.
Faltam-me as palavras ainda
para dizer quanto te amo.
Abraça-me, mãe.
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quinta-feira, 22 de março de 2012

Canção dos amantes ausentes


As mãos que esfregam as pálpebras
procurando ver dentro da noite
são as mãos que sussurram ao vento
o esplendor florido do teu nome
no clarão que acende no escuro
a luz de uma felicidade prometida.

As mãos que tecem no vazio
a metáfora das estátuas ausentes
são as mãos que em segredo alisam
do lado embaciado dos vidros
as dunas longínquas do teu rosto
num frémito de intenso desejo.

As mãos que tangem lágrimas de tinta
na harpa silenciosa das madrugadas
são estas mãos que buscam decifrar
o calor dos dedos com que pintas
a tela onde um dia nos iremos juntar
e traçam no último verso do poema
as quatro letras da palavra AMOR.

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sexta-feira, 16 de março de 2012

Eterna ausência dos sonhos


Os mortos desenham à noite
no mármore turvo das lápides
a solidão húmida da terra
com os ossos a ranger de frio
e uma lágrima na face pálida
lamentando incessantemente
numa caligrafia de cinzas e pó
a ausência total de sonhos
que lhes embala a eternidade do sono


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quinta-feira, 8 de março de 2012

Mulheres que não desistem de amar


As últimas flores do verão
recolhem as pétalas frágeis
num regaço de terra macia,
dobram o tronco exausto
pela carícia de uma luz ardente
e se preparam, em silêncio,
para a melancolia do outono;
a longa carruagem do frio
a atravessar a sombra dos dias.

Não choram nem lamentam,
o pólen desvanecido
e o estio que se enreda no corpo;
não reclamam o vigor despido
pelas unhas agrestes do tempo,
nem murcham
com o sopro bafiento do inverno.

Descalças desenham no chão
o perfume de um horizonte futuro
e nos braços do vento flutuam
sem nunca desistir de sonhar,
sabendo que sempre existe
um oculto caminho de regresso
à primavera e aos braços do amor.


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sexta-feira, 2 de março de 2012

Viúvas do mar



As mulheres vêm ao romper do sol
com os xailes inchados de luto
e o olhar voltado para dentro
a destilar uma agonia antiga

Cruzam as mãos sobre o peito
numa prece esbatida pelo cansaço
a aconchegar o frio que trazem nos ossos
e que herdaram da ressaca dos temporais
que se abateram subitamente, sem aviso

Num solilóquio vago e demorado
maldizem as tramas do destino
e se entregam a um ritual sem horizontes
enterrando os corações no areal

à espera que o mar lhes devolva a vida


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