sábado, 31 de agosto de 2013

Depois dos cinquenta


Depois dos cinquenta
o caminho torna-se mais inclinado.
A descida acentua-se
numa descontrolada vertigem
que invariavelmente termina
do outro lado do rio
num desamparo
sem margens nem retorno.

Entretanto
regressam as vozes da sede
e o corpo se transforma num deserto
onde a febre e o pó
lentamente escavam na areia
a dormência de uma cegueira nova.
A anunciação do sono
que há de chegar.

A paisagem regurgita
para um cálice que o vento sorve
resquícios oxidados de sémen
e tudo o que se foi acumulando
à volta da pele enrugada
despojando-se daquilo que lhe foge
e já não nos pertence.
Nem nunca pertenceu.

Falta-nos ainda assistir
através das janelas embaciadas
à derrocada da claridade.
O recorte último da ruína
a preparar os trilhos da ausência
que o ocaso celebra já
sob o velho alpendre onde repousa
aquilo que nos prende ainda à vida:

A delapidada ilusão de querer ver
os filhos seguindo seus próprios atalhos
sem receio de se perderem
e ter ainda uma réstia de lucidez
e algum alento extra
para acompanhar os netinhos ao jardim.
Como uma derradeira prova a superar
antes do acerto final de contas.

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domingo, 25 de agosto de 2013

Um atalho para medir a ausência de Deus


Um balouço rangeu toda a noite
o queixume da madeira encharcada
como uma oração que o vento rumina
com os lábios gretados pela insónia.
Tolhidos pelo desamparo da sede
com que a chuva ameaça o futuro
sombras esguias sentam-se ao luar
à espera daquilo que nunca regressa.
Varando os trilhos da memória.
Buscando no fumo e no bojo do frio
um atalho para medir a ausência de Deus.

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quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A idade das pedras


Quando eu tiver a idade destas pedras
que o mar acaricia com língua salgada
e o meu futuro forem apenas memórias
esvoaçando nas quilhas do esquecimento
não mais serei refém desta melancolia
que o vento desenha no areal do entardecer.

Quando eu for da idade destas pedras
lambidas pelo embalo da ondulação
e meu nome tiver sido apagado da areia
pela espuma branca de muitas marés
sentar-me-ei aqui neste velho pontão
como uma embarcação ancorada ao sol
na eterna transparência de um voo suspenso
a decifrar o segredo azul dos oceanos.

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