quarta-feira, 29 de junho de 2011

Sonhos ígneos



O anjo de corpo encarquilhado
sonhava com asas de fogo
a rebentarem-lhe nas omoplatas

e um leque de penas brancas
mais leves que o vento


qualquer coisa capaz de o levar
para lá das fronteiras do abismo

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sábado, 25 de junho de 2011

Ainda agora enjoei o dia


Ladram os cães no quintal
Por entre a algazarra do vento
Nas traseiras esquecidas da manhã
Ralhando à chuva que cai no cimento
Ainda agora rompeu o dia

Ladra o vento que cai nas traseiras
Por entre a algazarra da chuva
No cimento esquecido do quintal
Ralhando aos cães da manhã
Ainda agora latiu o dia

Na algazarra que cai no quintal
Os cães esquecidos do vento
Ralham às traseiras da manhã
Ladrando por entre a chuva no cimento
Ainda agora caiu o dia

Cai a chuva nas traseiras do vento
Esquecida no quintal de cimento
Por entre os cães que ralham
Ladrando à algazarra da manhã
Ainda agora enjoei o dia


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quinta-feira, 23 de junho de 2011

O poema que nunca havia sido terminado


Ecos de tinta negra
chegam de um poema que nunca terminei,
quando tropeço numa inesperada rebentação
de folhas velhas e amarrotadas.
Um emaranhado de sílabas que sacode
a clausura bafienta
de uma inércia de fundo de gaveta,
recordando uma dor antiga
que nenhum parágrafo pôde finalizar.
Palavras esquecidas,
fechadas num silêncio mutilado,
num sono profundo e lazarento,
esvaindo-se num vazio de raízes,
acorrentadas à ferrugem de um grito incompleto.

Numa vertigem de nostalgia,
sopro do papel a poeira amarelecida
onde o poema rumina a réstia de memória
que se desmoronou na lentidão sufocante dos dias,
e junto-lhe as palavras que lhe faltam
para que se liberte, finalmente,
de uma dor que já não me pertence.


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sábado, 18 de junho de 2011

Ciclo do fogo



Ao longe
onde o azul se funde
com o verde ondulante
das marés
desenhando a linha ténue
do horizonte
o sol sepulta
sua arrefecida sombra
na febre lenta
do poente

para renascer iluminado
do outro lado
do mundo
sobre a montanha que guarda
os insondáveis mistérios
do fogo


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terça-feira, 14 de junho de 2011

Nas teias da luz *


Com um beijo selas-me a boca
e me impedes de respirar.
Nada faço para me libertar desse feitiço
e, de bruços, deixo-me afogar
na ondulação morna dos teus lábios.

Com um sorriso perfuras-me o olhar
e me impedes de contemplar as estrelas.
Aceito essa cegueira súbita
mesmo sabendo que jamais voltarei a ver.

Com um suspiro rasgas-me o peito
e devassas todo o meu interior,
mas já nada importa, agora
que o leque aberto do teu corpo
me promete a libertação de todos os medos
e uma nova lâmpada se acende
na bruma desfeita dos meus sonhos solitários.



* Dedicado à amiga Célia do blog http://passosdailha.blogspot.com/
   por reclamar mais luz nos meus versos. 
   Não sei se cheguei lá, mas, pelo menos, acendi uma lâmpada...

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sexta-feira, 10 de junho de 2011

A máquina de gerar névoa


Uma estranha cegueira há muito havia toldado a paisagem do dia
ofuscando a luz com um manto de bruma densa e persistente.
Os feiticeiros falavam numa suprema ira do divino.
Diziam que o sol estava doente e aconselhavam orações e penitência,
mas o povo sabia que uma maldição se havia abatido sobre a tribo
e duvidava que algum dia se voltasse a ver a claridade do dia.

Os poderosos, contrariando todas as evidências,
falavam efusivamente num futuro promissor e radiante,
invocavam delirantes teorias e fórmulas mágicas
anunciando que toda a bruma seria dissipada em breve
se confiassem na sua palavra e seguissem todas as orientações.
Só os sábios anciãos nunca se pronunciavam.
Tinham deixado de emitir opiniões, pois já ninguém os escutava.

O tempo ia passando, numa sucessão obscura de anos,
e o sortilégio da aparente cegueira, permanecia,
sem que houvesse alguém capaz de desvendar o mistério.
Ninguém se lembrava já de outro tempo que não fosse
o dessa maldição de cinzas e enxofre a devassar os horizontes,
excepto os cantos antigos que eram secretamente invocados
e as histórias ainda murmuradas pelo povo, de boca em boca.
Os poderosos haviam, aos poucos, inibido qualquer apelo
a um passado luminoso, condenando-o a um rincão da memória
e ao inverosímil mundo das lendas e de obscuros mitos.

Um estranho cavaleiro montado num fogoso cavalo branco
chegou um dia, vindo de terras distantes e desconhecidas.
Contrariamente aos feiticeiros e poderosos da lei,
expressava-se numa linguagem que todos entendiam
e depressa conquistou o coração angustiado do povo
angariando uma legião de humildes e fiéis seguidores
que nele viam um poderoso enviado dos deuses.
Quando lhe perguntaram qual seria a cura para a escuridão
que ofuscava a claridade cativa do sol, disse, sem pestanejar:
Desliguem a máquina de gerar névoa e começaram a ver.

Os feiticeiros logo o acusaram de demente e herege.
Um visionário e impostor que tentava sublevar o povo
desrespeitando as leis e ancestrais tradições da tribo.
Teria de ser rápida e exemplarmente punido, bradavam.
Aliaram-se aos poderosos, que tudo controlavam
com o frequente recurso ao uso da força e das armas,
e apressadamente o levaram a julgamento em praça publica.
Os anciãos murmuraram em surdina, mas não se opuseram.
Recolhidos numa concha de silêncio e medo,
incapazes de contrariar a fúria daqueles que detinham o poder,
viram o cavaleiro, depois de barbaramente espancado,
ser sumariamente condenado e executado.

Aos poucos, a vida no seio da tribo regressou à normalidade,
devolvida à obscura e difusa cegueira que ainda a tolhe.
Alastra agora a convicção profunda e inabalável de que
a luz é altamente prejudicial à saúde e bem estar de todos,
causadora de chagas e enfermidades de toda a espécie.
Só a bruma, espessa e protetora, os poderá resguardar
e manter a salvo, de sabe-se lá que calamidades.

A memória do cavaleiro errante foi-se esbatendo lentamente
e já ninguém se lembra mais da máquina de gerar névoa.
O povo mantém-se ocupado com seus demasiados afazeres.
Os sábios anciãos sonham em segredo com a claridade perdida.
Feiticeiros e poderosos continuam a gerir os destinos globais.
E o sortilégio da escuridão perdura ainda, asfixiando os horizontes.

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terça-feira, 7 de junho de 2011

Restolho


Acordo como se nuca tivesse sido noite,
na manhã que esconde todas as sombras,
gritando teu nome pelos corredores vazios
com a voz que resgato ao pó das gavetas.
Pergunto por ti às horas que passam
fingindo não saber que é demasiado tarde
e abro as janelas ao coração inquieto
buscando teu rosto num solstício que não chega.
Com sílabas antigas refaço os mesmos versos
onde te tentei prender, na teia branca do poema,
e lentamente morro de novo na luz puída
que enreda o contorno sombrio da folha.
Erro por entre as dunas estéreis da estrofe
nos lugares perdidos onde nunca estás
invocando as palavras que ficaram por dizer
e que se desfazem na combustão dos parágrafos.
Sacrifico todos os sonhos que não sonhei
às musas de um futuro que não existe
tentando ressuscitar à memória das cinzas
as manhãs que me sussurraste no peito,
mas, aquilo que sobra do poema,
no restolho das minhas mãos vazias,
é apenas e só
a metáfora fria da tua prolongada ausência.

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sábado, 4 de junho de 2011

Sabores fortes


O amor pode ser comparado
a uma chávena de café,
fumegante e aromática.
Sento-me à mesa do desejo
e deixo-me levar pelos sabores fortes
que a minha imaginação tece
enquanto espero o café que pedi.


Se o levar aos lábios, no entanto,
sem lhe juntar um pouco de açúcar,
será um gosto amargo e intragável
aquilo que ele me irá devolver,
e nunca serei capaz de esvaziar a chávena
e apreciar toda a extensão do seu sabor,

assim como, sem o mel do teu corpo,
nunca saberei a que sabe o amor.

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quarta-feira, 1 de junho de 2011

Caminhos cercados


Uma alvorada de sinos decota o silêncio
pasmado no sangue envidraçado das manhãs.
Nos alpendres arruinados de uma divindade cega
o unicórnio negro tenta romper
o círculo mórbido do betão a céu aberto
esgravatando com os cascos em ferida
nos recantos de pedra de um horizonte selado.

Nenhum bosque verdejante cintila
na melancolia obscura que cerca a paisagem
onde o fio de baba do destino se esgota
no girar monótono das pás que degolam o vento.

É demasiado tarde para refazer o caminho.


O unicórnio negro atravessa a bruma
seguindo um rasto de cinzas na terra batida;
exalando um longo e atroz lamento
no coração do gelo que tinge o céu turvo
rente às margens onde se afogaram todos os sonhos.

É demasiado tarde para escolher outro caminho.

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