sexta-feira, 27 de abril de 2012

Combustão


Nas minhas mãos trémulas
teu corpo sereno aguarda
o fugaz poema
que escreverei esta noite
com as silabas quentes
de um desejo há muito anunciado.

De pequenos e roucos gemidos
será feita minha poesia
na rima cruzada dos corpos
formando uma única estrofe
sem versos,
sem qualquer palavra que possa trair
a febre mítica dos sentidos.

Esta noite trocarei as palavras
pela vogal sussurrante dos lençóis
e pelo frémito que percorre
a linha ardente dos teus lábios
e será este o poema
que a pena branca da alba
num fôlego derradeiro
irá pela manhã gravar
na incandescente memória
dos corpos em combustão.

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sábado, 21 de abril de 2012

Agrafia


Esqueci o começo deste poema
que compus em pensamento
e que tento, sem êxito,
estampar na nudez da folha,
atraiçoado pela tinta negra
que me mancha os dedos.

Lembro-me que falava de ti
e do desejo de te ter aqui
mas não sei que silabas inventar
para abraçar teu corpo distante
agora que a hesitação dos pulsos
encalha na inercia da memória
sublinhando o vazio da tua ausência.

Sob a luz baça do candeeiro
desenho um suspiro sem silabas
e em silêncio me deixo afundar
na erosão transparente do papel,
como uma maré que de súbito vazou
deixando a descoberto no areal
a caligrafia desfocada do teu rosto,

e até mesmo o final deste poema,
que compus em pensamento,
acabei também por esquecer.

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sexta-feira, 13 de abril de 2012

Um poema que me imortalize


Como todo o poeta
busco o poema que me imortalize
aquele que faça prevalecer meu nome
muito para lá da minha ausência.
Não será certamente este
nem o que virá a seguir
talvez nunca o consiga escrever
nunca seja capaz de desvendar
o enigma das palavras que desafiam
a passagem insone dos tempos
e permaneçam na memória breve
daqueles que nunca me conheceram.

A cada tentativa
vou desperdiçando esse fito,
esgoto-me em silabas de fumo
que esvoaçam num frémito breve
e se rasgam nas arestas da ventania,
mas nem por isso desisto.
Iludo-me nessa busca incerta,
poema após poema,
fracasso atrás de fracasso,
rasgando as veias,
implorando às musas insondáveis
um click de inspiração,
uma luz que se acenda de súbito
no clarão branco do sonho
ou nas asas dormentes da loucura.

Talvez num dia
de rara e fugaz magia
se acenda o mistério dessa visão,
o círculo secreto do fogo
que guia a mão dos talentosos
na transparência dos trilhos,
e a soma de todos os meus versos
seja o secreto passaporte
para atravessar o anonimato
e chegar, como um deus arrebatado,
à muralha das cidades lendárias
onde ecoa a voz dos imortais.

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quinta-feira, 5 de abril de 2012

Uma dor que não é minha


Acampada no meu peito
vive uma aranha triste
tecendo os fios de névoa
de uma obscura teia.
Quando escrevo
desliza pela folhas do caderno
como uma viúva errante
a envenenar-me a caligrafia
e a cercar as silabas
com a luz cega do seu luto,
entoando uma melancolia
que me ata os pulsos
à seda sombria do seu choro
e me impele a declamar
numa vertigem de carvão calcinado
os versos mutilados
de uma dor que não é minha.

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