sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Austeridade *


do fundo enxuto do poço
o balde arranca um punhado de sangue
que irá alimentar a prole faminta
de uma nova ninhada de demónios


* Como estamos em crise há que poupar nas palavras...


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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Angústia para o jantar



O rumor do vento a atravessar os véus do crepúsculo
faz-me lembrar por momentos teu assobio antigo
quando me chamavas, ao longe, para ir jantar
e eu tinha de abandonar a brincadeira e correr para casa
por temer que te zangasses com a minha demora.
Abro os olhos, atento ao movimento subtil das sombras,
na ilusória esperança de descortinar tua silhueta,
teu braço erguido a acenar à entrada do pátio
como quem chega de um lugar distante e esquecido.
Mas essa entrada já não existe, e tu também não.

Há muito que deixei de ser o menino que brincava na rua
e que em ti encontrava a segurança de um agitado esvoaçar.
Inquieta-me agora a ideia de não saber por onde andas,
em que esconsos caminhos te perdeste, dentro da noite,
e também eu me sinto perdido, sufocado pela tua ausência,
que recordação alguma poderá preencher. São horas de jantar
e não tenho apetite nem vontade de voltar a casa.
Se soubesse assobiar como tu o fazias, chamar-te-ia
para que viesses correndo e não te atrasasses,
mas não consigo mais do que um sopro rouco e apagado
que de certeza nunca serás capaz de escutar,
ou talvez escutes e nem sequer possas responder;
não possas largar tudo aquilo que tens para fazer
para regressar esta noite, e sentares-te comigo à mesa.

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sábado, 8 de outubro de 2011

Câncer



Está um bicho escondido no centro da encruzilhada.
Uma maré negra que te invade a brancura da alma,
onde a luz doente da tarde sucumbe, crucificada.
Armadilha de cinzas que lentamente se enrosca
nos alicerces decrépitos da tua juventude cercada
e na amarga solidão dos ossos que se desfazem
lambidos pela cegueira que te amaldiçoa as entranhas.

Está um bicho escondido no mais profundo de ti.
Um pássaro de lava debicando pétalas murchas
nos minaretes vergados do teu corpo corrompido.
Vagarosa peregrinação de fantasmas e demónios
que te arrasta pelos desolados mapas do poente
onde num silêncio de horizontes retalhados te afundas
engordando a ânsia faminta de um espasmo demorado.

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sábado, 1 de outubro de 2011

Dança do fogo


Ergo o cálice de sol e bebo a luz que transborda do peito
derretendo a ilha de gelo que o frio teceu nos teus lábios.
Pedra a pedra desvendo a trilha oculta nos teus ombros
cumprindo o ritual de sangue que teus deuses reclamam.
Desço a escadaria que me leva aos teus seios macios
onde a persistência do vento ergueu imponentes dunas
deixando em cada degrau o eco de mil gemidos.
Dou as mãos à fúria dos presságios que te sacodem
com as unhas feridas de acariciar falsas rosas
tateando com o frémito ofegante dos meus dedos
os caminhos proibidos que me levam ao templo escondido.
Mordo-te o ventre incendiado com dentes que roubei a um cego
cavando minha perdição no abismo que te cerca as entranhas.

É hoje que me deixo imolar nas labaredas do teu abraço
para amanhã renascer com asas de homem novo.


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