quinta-feira, 31 de março de 2011

Memórias efémeras


A paisagem não guarda memória
dos rostos que a atravessaram
nem dos sorrisos que se perderam
na moldura de sombra do poente.

O tempo, alheio aos desígnios da luz,
sacode todas as recordações
que não encontraram guarida
na excessiva sucessão de manhãs.

As pedras descoloridas do caminho
cobriram-se de musgo e nostalgia;
as árvores, ora vestidas, ora despidas,
estendem os braços para o horizonte
e permanecem de pé,
mastigando uma solidão de raízes;
mas, dos rostos sorridentes
que um dia atravessaram a primavera,
não guarda a paisagem qualquer memória.

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sábado, 26 de março de 2011

Alzheimer


















Ruiu a ponte gasta
que me levava à outra margem
e nenhum barco avisto
deste lado do silêncio.
O dia fecha-se num ocaso salino
e a luz desvanece-se
num voo de sombras perdidas
sobre o leito seco da memória.
Como uma estrela decadente
atraída pelo buraco negro do vazio
tombo no fundo cego
de um alçapão de névoas.

Não sei já quem sou
ou aquilo que algum dia fui.
Tudo se desvanece dentro de mim
numa maré de poeira e esquecimento.
Não reconheço nenhum destes vultos
que murmuram nos véus da penumbra
nem o brilho anónimo e distante
dos olhares que se confundem
numa metamorfose de rostos sem feições.
Confuso, vacilo na retina enferrujada
de um labirinto de fantasmas
mendigando o sol exilado
de velhas lembranças que me pertenceram.

Órfão de um passado sem retorno
persigo o cortejo de sombras
nas paredes caiadas de escuridão
por entre a luz que me resta
e ecos que o vento, ocasionalmente,
traz do outro lado da margem
onde completamente me perdi
à procura de mim.

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quarta-feira, 23 de março de 2011

Velha infância


Minha mãe invoca constantemente
imagens de uma velha infância,
como se se tratasse de uma vida anterior,
sepultada nas distantes orlas do tempo.
A sua própria infância.
Um palco secreto
povoado de rostos e lugares míticos
onde se abriga da monotonia do presente,
como se o tempo tivesse parado
quando dobrou a curva da adolescência,
e nenhuma outra vida a habitasse.

Enquanto divaga,
com o olhar perdido para lá da cerca,
remoendo relíquias de um tempo distante,
antes dos céus terem envelhecido
e o sol, em queda livre,
se precipitado nos abismos do poente;
vai fiando as memórias dispersas
de uma alvorada espoliada.

Movendo-se dentro da redoma frágil
desse mundo acabado,
– a menina que um dia foi,
espreita pelos postigos secretos de outrora
nos extintos jardins de uma inocência esbatida,
teimando em trazer o sol de maio
para o outono decrépito
que lhe queima as últimas folhas.

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sábado, 19 de março de 2011

Entre o vazio que cerca as estrofes


entre o vazio que cerca as estrofes,
no chão de pedra do meu silêncio,
desenho as palavras que me restam
e nunca fui capaz de pronunciar

vinco a folha pela dobra do verso
ao atravessar um desfiladeiro de vogais
no frémito lento onde ressoam
os pássaros feridos do meu lamento

como quem borda um rio sem margens
no frio enrodilhado da pele cercada
sacudo as amarras a que me condena
a escassa luz de um coro de consoantes

e sigo o sangue pisado das metáforas
sem adjectivos para fugir ao naufrágio
no grito obscuro que serpenteia
entre o vazio que cerca as estrofes


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quarta-feira, 16 de março de 2011

Prova dos nove


deito contas ao vazio
que me sobra
ao que subtraio desta dúvida
e não acho a soma
de tudo quanto já vivi

conto e reconto,
multiplico deduções,
e me perco
nos restos de uma sombra dividida


amanhã,
quando aqui voltar,
testarei novas equações
ou, quem sabe,
a prova dos nove
daquilo que me falta viver

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sábado, 12 de março de 2011

Espelhos


É inútil tentar corromper os espelhos
ou pedir-lhes que adulterem a realidade.

Eles nunca serão capazes de mentir.

Apenas devolvem o que não lhes pertence:
as emoções que o tempo cristalizou,
a luz ancorada nas rugas do sonho,
e a cegueira embaciada do presente.

Nada recordam do passado.

Nada sabem de futuro algum.


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quarta-feira, 9 de março de 2011

Naufrágio


Deixámos que o mar subisse
e nos abraçasse pela cintura

Deixámos que nos lambesse o peito
com língua fria de espuma
e em sucessivas vagas
nos rebentasse no areal da boca

Deixámos que nos cegasse
com a salmoura das marés
que lentamente nos cobriram
submergindo todas as margens


Foi assim que nos afogámos

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sábado, 5 de março de 2011

Barco de fuga


Sentado no litoral do imaginário
o poeta desenha um barco
com a madeira solitária dos versos
que guarda nas folhas amarrotadas
de um caderno negro

Desenha o mar distante da infância
e a paisagem costeira
de um secreto itinerário de espuma
com a água que lhe sobra
do olhar exausto e vencido

Aos confins longínquos da memória
resgata os traços trémulos do vento
com que acende a luz de um verão antigo
sobre um fundo azul
onde desenha o cais de onde nunca partiu

E espera pela subida da maré
para traçar os caminhos de fuga
por entre as quilhas da página vazia
onde o sol rasga vagas de névoa
e as sereias enredam viajantes perdidos

.

terça-feira, 1 de março de 2011

Melodia das manhãs iguais



o branco dos lençóis ondula ao sol da manhã
suspenso nas molas de um anónimo destino
quando te debruças sobre o abismo da varanda
cumprindo o ritual monótono da repetição dos dias

o vento, assobiando entre as frinchas do cimento,
sacode o teu rosto petrificado, juntando-se
ao coro das roldanas enferrujadas do estendal
a ranger num estranho gemido de roupa molhada

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