terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A imagem da vida



Construir uma vida
é como decifrar um puzzle gigantesco
onde algumas peças
simplesmente não encaixam
na imagem que é preciso formar.

À medida que vamos dispondo
os ínfimos fragmentos do puzzle,
numa paciência chinesa
que nos arrasta pelo suor dos dias,
a imagem vai-se transfigurando,
como a miragem que se dissipa
sempre que achamos
ter encontrado o oásis
ou decifrado o enigma.

Só muito mais tarde,
ao chegar o fim do caminho,
é que o puzzle finalmente se completa
e que podemos descobrir
a face obscura da imagem
que andámos, anos a fio, a montar.

E ai, então, descobrimos
que ela é apenas um espelho
onde esbatido se reflecte
o nosso rosto aprisionado.


poema escrito em 2010-12-27

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Poema de Natal



O poema é como um pequeno pinheiro branco
que decoramos com a tinta das mãos sujas,
quando o inverno cospe as neves solitárias
e a alma se fecha no musgo de um sótão vazio.
De joelhos, sobre o mármore corrompido do soalho
estendemos enfeites, como criança ávida de carícias:
Pequenas bolinhas de fantasia puída;
velhas luzes já sem cor nem brilho;
um rastilho de silêncio e sonhos entrelaçados
no matizado serpenteante das fitas;
e, por fim, no topo da árvore, as estrelas cadentes
que tombaram dos céus arruinados da infância.

Tudo isto, numa estranha mescla de nostalgia,
para celebrar o natal de todas as nossas agonias.


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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Deuses da chuva



Sob as ruínas envelhecidas dos impérios
velhos deuses gemem em surdina
reduzidos ao mármore do esquecimento

Incapazes de perceberem onde estão
ou que o passado se esgotou há muito
vagueiam pelos abismos das cidades
que se ergueram na poeira dos altares
onde outrora foram invocados

e aguardam, numa angústia de pedra,
que os homens recobrem a memória
e de novo lhes peçam para fazer chover
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domingo, 12 de dezembro de 2010

Ubiquidade



Podias ter vindo hoje,
como quem chega de longe,
rompendo o silêncio da manhã
num voo de velas desfraldadas
ou num canto súbito de rouxinol
anunciando a primavera.

Podias não ter vindo hoje,
perdida numa maré de nevoeiro,
sem encontrar o caminho,
deixando-me preso à margem deserta
de um rio de águas estagnadas
como um barco sem rumo.

Podias ou não ter vindo hoje,
encher meu dia de luz ou sombra,
que não impedirias a noite de cair
nem o vento de bater nas janelas
ou que os cães latissem à lua
incapazes de compreender o futuro.

O que te queria mesmo dizer,
tivesses ou não ter vindo hoje,
é que sempre estarás dentro de mim,
mesmo nos dias em que nunca vens.


poema escrito em 2010-12-11

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Desbravando mares gelados



Éramos como pequenas naus de um mar atribulado
junto à rebentação das vagas nocturnas.
Fantasmas costeiros de uma sede vertiginosa
à deriva nas águas de um futuro sem horizontes.

Pulsos atados aos vapores turvos do vento
e ao leme de bússolas sem qualquer norte,
percorríamos a cartografia das vielas dispersas,
com a ânsia entorpecida das marés de verão
a desbravar pontões de areia e nevoeiro
na espuma gelada de canecas transparentes.

Entre a insónia estilhaçada das correntes
e os velhos portos onde sempre atracávamos,
dávamos à costa na dormência das algas encharcadas,
em busca da luz amputada na incerteza das manhãs,
onde repousávamos o cansaço de velas retalhadas
nos limos exaustos das tempestades sem rumo.



poema escrito em  2010-10-27

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

À espera de um rasgo de inspiração



O inverno demora-se
nos lábios frios do poeta.
Um obscuro bater de portas
sacode os rebordos da folha vazia,
agora que a luz definha
ao fundo dos corredores decrépitos
onde o vento range
sob um poente de sombras gastas.


Alimento a sede dos tinteiros
com o sangue pisado das sílabas
e com os versos que restam
nos parapeitos cinzentos da memória,
debruçado sobre a madrugada solitária
das linhas que nunca escrevi,

à espera de um rasgo de inspiração.


poema escrito em 2010-12-06

domingo, 5 de dezembro de 2010

Domingo de manhã



Debruçadas sobre o equilíbrio ferrugento dos estendais,
envoltas ainda no turco quente e fofo dos pijamas,
as mulheres estendem a pele lavada
que os maridos despiram, sexta feira ao fim do dia,
fingindo que está um lindo dia para enxugar a roupa
e as feridas que teimam em sangrar.

Levando pela trela cãezinhos amestrados,
com o ventre inchado de fezes e urina
e um apetite alucinado por relva tenra e húmida,
os homens, em coloridos fatos de treino,
descem ao verde agoniado dos jardins.
Acendendo um cigarro, inspiram profundamente,
enchendo os pulmões com a insónia da manhã
e fingindo acreditar ainda, numa patética
e esbatida ilusão de liberdade.

É domingo de manhã.
O sol espreita timidamente
por detrás de carrancudas nuvens
que nada sabem do ritmo dos dias
e ameaçam a fragilidade parda do horizonte
com seus punhais de chuva e solidão.
Lentamente, esmago a ponta de cigarro
no espanto encardido do cinzeiro,
bato com o vidro duplo da janela
e regresso ao silêncio adiado do quarto,
desligando-me de novo do mundo
e das arrefecidas divagações matinais,
fingindo, também,
que, hoje, alguma coisa irá mudar.


poema escrito em 2010-11-30

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Maré negra



Do outro lado da margem,
onde o sol é apenas miragem,
negros pássaros sem asas
vasculham nas areias escassas
alguma réstia de fé
nos
despojos imundos da maré.

Do outro lado da margem,
no seio vago da voragem,
pequenos fantasmas desvalidos,
estendendo os braços caídos,
buscam no lodo do baixio
seus sonhos afogados no rio.


poema escrito em 2008-02-24

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Sonhos de argila



Talvez um dia
o destino se baralhe
no rumo trôpego dos seus passos
e eu te veja chegar,
num golpe súbito de asas,
por entre as serpentes ondulantes
de uma miragem.

Talvez eu ainda te espere
debaixo de uma chuva ácida
que me corrói o desejo,
e tu, dobrando a esquina
dos becos soterrados no peito,
com o arco secreto do teu ventre
acendas uma luz colorida
na íris desbotada do meu rosto.

Talvez a vida, afinal,
seja apenas um sonho confuso
onde tudo é permitido
e, despindo a argila que te cobre,
tu rasgues todas as distâncias
e me estendas tua mão,
no fugaz esplendor
de uma estrela cadente.


poema escrito em 2010-12-01
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