quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Partida


Na caixa das ausências
deixaste um aviso de receção.

Uma despedida apressada
para eu levantar num balcão da saudade
no prazo máximo
de três suspiros inúteis.

Um adeus de tinta permanente
em papel reciclado
numa caligrafia sem futuro.

Sem data de regresso
nem endereço para devolver. 

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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Ditadores


De tanto verem na ilusão dos espelhos
a sua pequena imagem deformada
os anões perversos da fábula
julgam agora serem os gigantes
que dominam as cidades adormecidas

e fazem estremecer o mundo
com o eco atarracado do seu júbilo
quando correm descalços no nevoeiro
martelando as tábuas podres do soalho
com o passo manco da cegueira


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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Alguém pode fechar o caderno?



O poeta agachou-se
sobre a página por escrever
e como por encanto foi arrebatado
para dentro do caderno.
Subitamente viu-se sozinho
num universo estranho
onde tudo era branco e liso
como uma névoa em plena luz do dia.
Nunca se tinha sentido assim
mergulhado numa paz profunda
e reconfortante.

Ao longe
pareceu-lhe ouvir vozes.
Alguém a dizer
que o jantar estava na mesa.
E chamavam pelo seu nome.
Repetidamente
num apelo que não cessava.

Em silêncio arrastou-se
até ao topo da folha
e com o carvão da lapiseira
que lhe manchava a ponta dos dedos
em letras garrafais escreveu:

POR FAVOR…
ALGUÉM PODE FECHAR O CADERNO?


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domingo, 7 de agosto de 2011

A barca de Caronte



Em troca de uma moeda
posso conduzir qualquer um
à outra margem do rio.
Ricos ou pobres,
católicos ou judeus,
homens ou mulheres,
nada me importa
o que poderão ter sido um dia.
É este o meu destino.
Prometeu atado aos remos da penitência,
para trás e para a frente,
num interminável corrupio
seguindo o destino dos ventos.

Não me compadecem gritos nem choros,
não me peçam para retornar
forçando o leme e as velas;
a nenhum eu posso valer.
Os que estavam vivos
estão agora mortos
e o lugar da morte
é do outro lado da margem,
onde o silêncio ergueu catedrais
e a terra fervilha de ossadas frias;
onde todos os sonhos se esgotam
e todas as ilusões se afundam;
onde não existem horizontes
e tudo é coberto por um manto de nada,
sem luz a alumiar os caminhos;
onde já não há esperança
nem alivio,
e a ninguém é permitido respirar.

A troco de uma moeda,
um simples óbolo de níquel,
posso levar qualquer um
para o outro lado do rio.


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