terça-feira, 30 de outubro de 2012

Um novo ciclo


Acordo subitamente de um sonho denso
com a boca a saber-me a cinza fumegante
e os níveis de alcatrão e nicotina no sangue
perigosamente abaixo dos mínimos permitidos.

Como um frémito que me tolda os sentidos
todos os alarmes soam ao fundo do corredor
onde os demónios da tentação rastejam
afiando as garras de encontro à porta.

Enrolo os dedos na mortalha branca do lençol
com vontade de me levantar e desistir, mas
fecho os olhos, e sonho com casas incendiadas.
Há sete dias que não fumo qualquer cigarro.

Incapaz de saborear o prazer do primeiro café
arrasto-me na solidão da manhã, e me interrogo:
se a resistência será um ato heroico e descomunal
ou apenas o início de um novo ciclo de terror?

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domingo, 14 de outubro de 2012

No fim da terra


Aqui onde a terra acaba
aos pés de um mar salgado e decrépito
vive uma raça de gente vergada
aos despojos da rebentação
gente que caminha junto às margens
a decifrar num areal silencioso
o mistério da mudez dos búzios
e dos sonhos que no horizonte se perderam

Aqui neste retângulo de areia
onde já não brilha a luz do farol
e os barcos se quedam no cais
ancorados numa agonia enferrujada
vive a esperança que definha
nos vultos que se debruçam ao relento
sobre a espuma inquinada da memória
vergados pela exaustão do medo

Aqui neste outono encurralado
a sul de nenhum norte
onde os dias se dispersam pelo vento
e os cavalos continuam perdidos no nevoeiro
sem cavaleiro
sem ninguém que agite o fulgor das bandeiras
e rasgue com a luz do facho reacendido
o caminho que as sombras toldaram

vive a gente que não teme a morte
nem a ameaça da espada infiel
e que herdou dos sonhos e dos deuses
a glória de um destino maior
porque aqui onde é o fim da terra
e o mar mergulha no azul profundo
um dia há de ser novamente
o princípio de um outro futuro.

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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Louco amor


Nenhum poema poderá descrever
a urgência do nosso encontro,
as noites impacientes que nos aguardam.
Nenhum verso, nenhuma palavra,
conhecem a sede desta loucura,
o oculto formigueiro que nos sacode.

Nada escrevas que denuncie este segredo,
deixa as páginas repousarem
na cumplicidade branca do silêncio.
Só assim haverá espaço no poema
para que o amor se transcenda
e possa galgar todas as margens.

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segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Fantasmas da memória


Os fantasmas da memória
chegam com os olhos inchados
e um sol encolhido
na palma enrugada das mãos,
como quem sai precipitadamente
das páginas de um livro já lido,
recuperando uma visão adormecida.
Incapazes de se resignarem
às fronteiras do esquecimento
batem com os pés na poeira do chão
reacendendo as cinzas de uma fogueira
que não se extinguiu ainda.
Com o giz branco da saudade
desenham nas paredes
um rosto que não pode ser apagado
pelas águas que a chuva devolve
nem pelo arrastar mórbido dos dias
enquanto caminham em silêncio
por entre as cortinas do vento
sem revelar por onde têm andado,
o que têm feito para resistir ao tempo,
e os secretos caminhos trilhados
do outro lado dos espelhos.
Presos a uma imagem que vou desfiando
com as unhas baças de raspar o vazio
renascem subitamente
de uma voz que se acende no escuro,
das frestas de uma janela mal fechada,
de um túnel sem luz ao fundo,
do nada onde se escondem
à espera de serem recordados.

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