sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Visão cósmica de um coração enferrujado


Essa luz que do teu rosto irradia
é o reflexo de um céu que se contraiu
ou o embrião de uma nova estrela?
Poderá ela alimentar a chama que definha?

Que fluxo é este que o sangue bombeia
e faz vibrar o pêndulo do coração
restituindo-lhe a claridade perdida?

Atraído pela magia desse sorriso
devolvo ao olhar o azul do firmamento
e de novo refaço a dança dos astros.

O fogo não cessou por completo.
Nada está definitivamente encerrado.
Alguma coisa palpita ainda
neste pequeno cosmos enferrujado.

É possível, então, voltar a sonhar?

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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A estranha linguagem do amor


Ao lado da cama, onde ao meu filho
é drenado o ar acumulado
entre a pleura e o pulmão esquerdo
após pneumotórax reincidente,
um meigo velhinho de 94 anos
chama, num delírio constante,
por alguém que não está.
Depois ergue-se, de súbito,
e diz, com a voz embargada:
eu só quero voltar para casa
para ao pé da minha companheira.

Então, volta a deitar-se, serenado,
e diz de novo, num suspiro profundo:
já somos casados à 76 anos
e ela chora quando eu não estou.

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sábado, 20 de setembro de 2014

Curva branca


Em forma de ponte
dobrava-me para a frente
e atravessava-te
de um extremo ao outro
unindo num só desejo
as duas margens
do teu corpo encrespado

eras então uma ilha
onde me refugiava
do rugido das tempestades
e da insânia das marés
um marulhar ébrio
de águas a correr
sobre o meu leito árido

e eu inclinava os ombros
e deixava-me levar
ao sabor dessa ondulação
até que fosses somente
a curva branca de um rio
onde o arco-íris ia saciar
a sua sede de novas cores

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sábado, 23 de agosto de 2014

Excessiva cegueira


A cada hora que passa
aproxima-se o fim da viagem.
O limiar da última fronteira.
Segue a estrada sinuosa
que não sabes ainda onde te leva.
Não existem trilhos perfeitos.

Acende agora outro cigarro
despeja o copo que tens na mão
deixa arder a febre do desejo.
Entrega-te à histeria dos suicidas
que fazem de cada curva
a forma segura de encurtar caminho.
Perigoso é ficar parado.

Ama com o desespero e a urgência
do coração que tudo vai perder.
Passa para o outro lado dos túneis
onde talvez brilhe a luz
capaz de iluminar esta cratera.
Não sonhes, vive e aprende.

Evade-te dos dias lentos
que passam a correr
e mergulha fundo dentro da noite.
Deixa o corpo rodopiar
na pulsação centrífuga
desse espasmo de néon e cinzas.
A insónia é o teu melhor aliado.

Ergue-te ao voo picado
sobre os telhados do abismo.
Sem roteiros nem receios.
Avança com a cegueira definitiva
de quem não quer ver
o pasmo dos que ficaram estagnados
a definhar num pedestal enrugado.
Não cedas à agonia da vertigem.

Caminha sobre a pedra quente
onde os teus passos deixem um rasto
e segue o vento que não tem destino
nem busca qualquer resposta.
Os labirintos só existem dentro de ti.

Não esperes pelo tempo.
Quando o corpo é jovem
todos os excessos são permitidos.

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sexta-feira, 11 de julho de 2014

Distância


Que nome te hei de dar
agora que me entraste no sonho
e descalça caminhas
por entre o veludo macio
das areias molhadas
resgatando ao som dos búzios
o longínquo cântico
de sereias bronzeadas

Fecho os olhos
e deixo-me embalar
pelo espasmo dos sentidos
sabendo que qualquer miragem
nos afasta da sede
e da estéril erosão das dunas
onde nos sentámos
à espera da rebentação

Tudo o que nos separa
é apenas a ilusão da carne
a transparência breve
de uma cortina de espuma
o click de uma janela
acesa na escuridão
como um farol vigilante
apontando o caminho

Com o avanço das marés
há de nascer em nós
esse irremediável desejo
de vencer a fúria dos oceanos
erguer a ponte de conchas
capaz de abraçar todas as margens
e aproximar de novo os corpos
que o fogo inflamou

Talvez seja esta distância
afinal de contas
aquilo que para sempre nos une

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segunda-feira, 23 de junho de 2014

O segredo de Deus


O silêncio é um sinal de Deus.
A palavra do infinito amor
a reluzir naquilo que o fogo murmura
num idioma há muito esquecido.
Deus não mexe os lábios de pedra
nem gagueja como o vento
ao atravessar o verde da folhagem
mas é num voo de pássaros
que estende o colorido das suas sílabas
fluindo numa oração comovida.
E esse é o seu grande segredo.

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sexta-feira, 11 de abril de 2014

A menina que salta à corda


Uma menina sorri e salta à corda
sem nunca perder o equilíbrio
ignorando que há muito já morreu
e que é apenas um oxidado reflexo
que velhos espelhos continuam a devolver.

Tem as feições obscurecidas pelos anos
e pelos ventos que atravessaram
os muros brancos de um quintal extinto
mas não perdeu a infantil vocação
de quem sabe as fórmulas de burlar o tempo.

Descalça e imune às caricias do gelo
levanta repetidamente os pés do chão
enfeitiçada pela luz que a tarde eternizou
sempre que a corda desenha no ar
a cadência febril da sua elipse.

E enquanto houver quem seja capaz
de alimentar o rastilho desse movimento
não deixará nunca de pular sobre a corda
nem de ser a menina que sorri
ignorando qualquer memória da morte.

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domingo, 23 de março de 2014

Um nome que atravessa toda a eternidade


O anjo da revelação chega ao entardecer
com um livro fechado debaixo do braço.
Uma sebenta de capa negra e gasta
onde se encerra o clamor dos desertos.
Todas as palavras que Deus sussurrou
na sarça ardente de uma voz sem rosto.

O anjo da revelação traz o frio nos lábios
e grita para as profundezas de um poço
a metáfora azul da separação das águas.
E com a cor do sangue que há de ser vertido
risca na brancura imaculada da pedra
um nome que atravessa toda a eternidade.

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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

NEFERTITI - A bela que veio


I

Frente a um espelho de prata
uma mulher contempla seu rosto.
O mais belo entre os mais belos.
Não é ainda a pompa e o mito
que o tempo há de amadurecer.
Apenas um rosto jovem e radiante.
Uma joia que chega pela manhã
envolta na transparência do linho.
Como o sol que desponta
incendiando o rebordo das dunas.


II

Um coro de jovens e formosas virgens
entoa cânticos de júbilo.
Um hino a anunciar um recomeço.
Um ciclo de glória e redenção.
Retinem sistros de prata
flautas e harpas de doze cordas.
A casa está de novo iluminada.
Uma nuvem de incenso ergue-se
como um obelisco perfumado
espargindo a boa-nova.


III

Abrem-se as portas do templo
para receber aquela que veio.
Ungida pelas águas do rio
e coroada pelos sete raios solares
chega numa liteira dourada
coberta por um véu diáfano.
Uma coluna de escravos negros
transporta-a no alto dos braços
e com suaves e ritmados movimentos
aos pés do trono a depõem.


IV

Dezoito dias duram os festejos
dentro das muralhas da cidade.
O tempo que a tradição reclama
para que se cumpram todos os presságios.
São invocadas as deusas da fertilidade.
Ritos que reproduzem movimentos cósmicos
e garantem a ancestral harmonia
com os mundos ocultos e superiores.
As luzes que agora se acendem
irão arder toda a noite.

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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O anjo rejeitado


Um anjo coroado de espinhos, avança
como um nome anunciado pelo vento.
Não sabemos quando foi que chegou
e porque caminha na nossa direção.
Não vemos que a luz à sua volta
sobressai e se torna plena e imutável
ofuscando a noite nessa cintilação.
Ninguém sabe ainda donde veio
esta respiração que varou desertos
trazendo um sentido novo e vasto
a um sentimento que desconhecíamos
e não somos capazes de reter.
Um som que diverge das outras vozes
e sacia a sede que no íntimo fere.
Há quem diga que é apenas ilusão
provocada pela névoa excessiva
de quem vive há muito sob o peso da poeira
e viram-lhe costas, sacudindo as mãos.
Outros, dando voz a sonhos mais profundos
juram que é um pastor de ovelhas perdidas
que veio juntar o rebanho tresmalhado.
Mas ninguém dá um passo em frente
que o resgate ao furor demente dos lobos
ou lhe redima o corpo que tomba.
Mergulhados nessa bestial cegueira
demasiado tempo levámos a desvendar
o segredo incompleto do seu nome
e o milagre de o termos aqui entre nós.
E quando finalmente abrimos os braços
procurando o calor da sua labareda
ou um abrigo para apaziguar a dor
ele já havia seguido caminho.

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