sexta-feira, 10 de junho de 2011

A máquina de gerar névoa


Uma estranha cegueira há muito havia toldado a paisagem do dia
ofuscando a luz com um manto de bruma densa e persistente.
Os feiticeiros falavam numa suprema ira do divino.
Diziam que o sol estava doente e aconselhavam orações e penitência,
mas o povo sabia que uma maldição se havia abatido sobre a tribo
e duvidava que algum dia se voltasse a ver a claridade do dia.

Os poderosos, contrariando todas as evidências,
falavam efusivamente num futuro promissor e radiante,
invocavam delirantes teorias e fórmulas mágicas
anunciando que toda a bruma seria dissipada em breve
se confiassem na sua palavra e seguissem todas as orientações.
Só os sábios anciãos nunca se pronunciavam.
Tinham deixado de emitir opiniões, pois já ninguém os escutava.

O tempo ia passando, numa sucessão obscura de anos,
e o sortilégio da aparente cegueira, permanecia,
sem que houvesse alguém capaz de desvendar o mistério.
Ninguém se lembrava já de outro tempo que não fosse
o dessa maldição de cinzas e enxofre a devassar os horizontes,
excepto os cantos antigos que eram secretamente invocados
e as histórias ainda murmuradas pelo povo, de boca em boca.
Os poderosos haviam, aos poucos, inibido qualquer apelo
a um passado luminoso, condenando-o a um rincão da memória
e ao inverosímil mundo das lendas e de obscuros mitos.

Um estranho cavaleiro montado num fogoso cavalo branco
chegou um dia, vindo de terras distantes e desconhecidas.
Contrariamente aos feiticeiros e poderosos da lei,
expressava-se numa linguagem que todos entendiam
e depressa conquistou o coração angustiado do povo
angariando uma legião de humildes e fiéis seguidores
que nele viam um poderoso enviado dos deuses.
Quando lhe perguntaram qual seria a cura para a escuridão
que ofuscava a claridade cativa do sol, disse, sem pestanejar:
Desliguem a máquina de gerar névoa e começaram a ver.

Os feiticeiros logo o acusaram de demente e herege.
Um visionário e impostor que tentava sublevar o povo
desrespeitando as leis e ancestrais tradições da tribo.
Teria de ser rápida e exemplarmente punido, bradavam.
Aliaram-se aos poderosos, que tudo controlavam
com o frequente recurso ao uso da força e das armas,
e apressadamente o levaram a julgamento em praça publica.
Os anciãos murmuraram em surdina, mas não se opuseram.
Recolhidos numa concha de silêncio e medo,
incapazes de contrariar a fúria daqueles que detinham o poder,
viram o cavaleiro, depois de barbaramente espancado,
ser sumariamente condenado e executado.

Aos poucos, a vida no seio da tribo regressou à normalidade,
devolvida à obscura e difusa cegueira que ainda a tolhe.
Alastra agora a convicção profunda e inabalável de que
a luz é altamente prejudicial à saúde e bem estar de todos,
causadora de chagas e enfermidades de toda a espécie.
Só a bruma, espessa e protetora, os poderá resguardar
e manter a salvo, de sabe-se lá que calamidades.

A memória do cavaleiro errante foi-se esbatendo lentamente
e já ninguém se lembra mais da máquina de gerar névoa.
O povo mantém-se ocupado com seus demasiados afazeres.
Os sábios anciãos sonham em segredo com a claridade perdida.
Feiticeiros e poderosos continuam a gerir os destinos globais.
E o sortilégio da escuridão perdura ainda, asfixiando os horizontes.

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18 comentários:

M. disse...

Não sei se é uma parábola...lol ou uma metáfora.

Confesso que este não é o meu imaginário. Mas escrito assim: adiro e gosto:)

Teresa Santos disse...

O presente, uma metáfora?

Passado? / Presente?

Sequências?

Consequências?

Que fututo, Runa, que futuro?

Mari Amorim disse...

Runa,
Gostei muito de seu post,saio refletindo!
Deixo-lhe meu abraço,cheio de boas energias,sempre!
Mari

Ani Braga disse...

Olá querido Runa,

Sempre muito bom estar por aqui lendo seus textos tão inteligentes e bonitos...

Que você tenha um lindo final de semana e que o amor esteja sempre presente em sua vida.

Beijos
Ani

Flor de Jasmim disse...

Runa
Forte demais!!! Meu amigo eu penso que a cegueira continua a toldar a paisagem e a ofuscar a beleza do universso.
Beijin bom fim de semana

MARILENE disse...

É o que acontece na vida. Deixamos nos cegar e assim, passamos a viver na escuridão. Deixamos de ouvir a razão e nos guiamos pela comodidade e medo.

Bjs.

mfc disse...

Qualquer semelhança com o momento actual... deve ser pura coincidência!
Muito bem escrito.
Parabéns.

Anónimo disse...

Passando para te ler e deixar uma beijoca em seu coração!

Verinha

Vivian disse...

Bom dia,Runa!!

Nossa!!Viajei no texto! Adorei!
Encantei-me com o cavaleiro, precisou de bravura para ir contra a ordem vigente e mostrar a verdade...Lindo e emocionante!
Beijos pra ti!

Reinadi Sampaio disse...

Oi meu amigo,
belíssimas tuas palavras, reportei-me a um outro momento... uma tela minha "Momento de transição"... Da mesma forma que tu, ainda faço as mesmas idagações... não sei onde há maior escuridão - se lá na "caverna" ou aqui nesse outro lado da "claridade"...

Um grande abraço fraterno.
Flor.

Reinadi Sampaio disse...

Runa, lá no meu multiply, tem a tela, não foi possível postar o endereço aqui.

Anónimo disse...

Verdade, uma fábula que faz alusão ao mundo atual. Poderosos nos enganam, mascarando os seus delitos. Nos cegam nos cobrindo com as névoas...

Beijos,

CF disse...

Runa
Um lindo texto que nos atenta para alguns dos "perigos" ou luzes da cegueira...
Lembrei-me do "ensaio sobre a cegueira" de Saramago onde ser-se cego pode trazer alguma luz ao espirito dos Homens...
pela acutilância dos outros sentidos sobre a visão, numa "viagem" ao interior de si..
ou então a subjugação ao poder dos dominadores que tudo fazem para a cegueira ser total...
os dominados, simplesmente, preferem acreditar que assim é, sem mais esperança nas suas próprias capacidades...
Algo a que actualmente, cada vez mais somos menos alheios!!!
Abraço
Parabéns pelo belíssimo texto

Sonia Pallone disse...

Meu querido Runa, vi seu recadinho carinhoso no Solidão de Alma e vim agradecer e conhecer seu espaço, que por sinal é lindo, todo escrito na linguagem que eu gosto...Te sigo também meu querido e voltarei sempre que puder. Beijos

Evanir disse...

Hoje mais uma vez com uma colinha
até ficar bem e poder digitar
a vontade sem sentir dor
nos meus dedinhos.
ESTOU COM TENDINITE E
FAZENDO FISIOTERAPIA
TODOS OS DIAS.
Nem por isso deixarei de
me fazer presente a cada amizade
para mim tão sagrada.
Deus abençoe sua semana ..
beijos no coração..Evanir..
Te Amo..Te Amo...

rosa-branca disse...

Olá amigo Runa, este é um texto transcrito do passado, mas que encaixa perfeitamente no presente. Afinal nada mudou...continua tudo como antigamente. Estranha cegueira, poderosos, ganância...e contra isto não há cavaleiro que resista. A frase que destaquei diz tudo meu amigo. Beijos com muito carinho

Feiticeiros e poderosos continuam a gerir os destinos globais.

Sandra Subtil disse...

Engraçado, ao ler o teu texto lembrei-me de " o dia cinzento" de Mário Dionísio...
Beijinho

AC disse...

O verdadeiro nome das coisas foi ficando soterrado nos escombros do tempo, e deles já não há memória. Os vendilhões do templo encarregaram-se de a dissipar.

Beijo :)

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