quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Atração


Será o acaso ou as leis irreversíveis do destino
quem separa ou volta a unir duas almas
que palmilharam os sete trilhos do mundo
para se encontrarem um dia por acaso
onde não era suposto isso acontecer?
Que estranhas forças impulsionam os mecanismos
deste carrossel que desenha na terra batida
os sinuosos percursos do tempo que se move?
Com que asas voam os pássaros na direção do sol
alimentando um sonho que cresceu com a distância?
E o vento, saberá os caminhos ermos da montanha
se não se acenderem fogueiras azuis no horizonte?
Levantar-se-á alguma cidade mágica
nas traseiras da feira abandonada
quando duas solidões finalmente se atraírem?
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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Visão cósmica de um coração enferrujado


Essa luz que do teu rosto irradia
é o reflexo de um céu que se contraiu
ou o embrião de uma nova estrela?
Poderá ela alimentar a chama que definha?

Que fluxo é este que o sangue bombeia
e faz vibrar o pêndulo do coração
restituindo-lhe a claridade perdida?

Atraído pela magia desse sorriso
devolvo ao olhar o azul do firmamento
e de novo refaço a dança dos astros.

O fogo não cessou por completo.
Nada está definitivamente encerrado.
Alguma coisa palpita ainda
neste pequeno cosmos enferrujado.

É possível, então, voltar a sonhar?

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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A estranha linguagem do amor


Ao lado da cama, onde ao meu filho
é drenado o ar acumulado
entre a pleura e o pulmão esquerdo
após pneumotórax reincidente,
um meigo velhinho de 94 anos
chama, num delírio constante,
por alguém que não está.
Depois ergue-se, de súbito,
e diz, com a voz embargada:
eu só quero voltar para casa
para ao pé da minha companheira.

Então, volta a deitar-se, serenado,
e diz de novo, num suspiro profundo:
já somos casados à 76 anos
e ela chora quando eu não estou.

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sábado, 20 de setembro de 2014

Curva branca


Em forma de ponte
dobrava-me para a frente
e atravessava-te
de um extremo ao outro
unindo num só desejo
as duas margens
do teu corpo encrespado

eras então uma ilha
onde me refugiava
do rugido das tempestades
e da insânia das marés
um marulhar ébrio
de águas a correr
sobre o meu leito árido

e eu inclinava os ombros
e deixava-me levar
ao sabor dessa ondulação
até que fosses somente
a curva branca de um rio
onde o arco-íris ia saciar
a sua sede de novas cores

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sábado, 23 de agosto de 2014

Excessiva cegueira


A cada hora que passa
aproxima-se o fim da viagem.
O limiar da última fronteira.
Segue a estrada sinuosa
que não sabes ainda onde te leva.
Não existem trilhos perfeitos.

Acende agora outro cigarro
despeja o copo que tens na mão
deixa arder a febre do desejo.
Entrega-te à histeria dos suicidas
que fazem de cada curva
a forma segura de encurtar caminho.
Perigoso é ficar parado.

Ama com o desespero e a urgência
do coração que tudo vai perder.
Passa para o outro lado dos túneis
onde talvez brilhe a luz
capaz de iluminar esta cratera.
Não sonhes, vive e aprende.

Evade-te dos dias lentos
que passam a correr
e mergulha fundo dentro da noite.
Deixa o corpo rodopiar
na pulsação centrífuga
desse espasmo de néon e cinzas.
A insónia é o teu melhor aliado.

Ergue-te ao voo picado
sobre os telhados do abismo.
Sem roteiros nem receios.
Avança com a cegueira definitiva
de quem não quer ver
o pasmo dos que ficaram estagnados
a definhar num pedestal enrugado.
Não cedas à agonia da vertigem.

Caminha sobre a pedra quente
onde os teus passos deixem um rasto
e segue o vento que não tem destino
nem busca qualquer resposta.
Os labirintos só existem dentro de ti.

Não esperes pelo tempo.
Quando o corpo é jovem
todos os excessos são permitidos.

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sexta-feira, 11 de julho de 2014

Distância


Que nome te hei de dar
agora que me entraste no sonho
e descalça caminhas
por entre o veludo macio
das areias molhadas
resgatando ao som dos búzios
o longínquo cântico
de sereias bronzeadas

Fecho os olhos
e deixo-me embalar
pelo espasmo dos sentidos
sabendo que qualquer miragem
nos afasta da sede
e da estéril erosão das dunas
onde nos sentámos
à espera da rebentação

Tudo o que nos separa
é apenas a ilusão da carne
a transparência breve
de uma cortina de espuma
o click de uma janela
acesa na escuridão
como um farol vigilante
apontando o caminho

Com o avanço das marés
há de nascer em nós
esse irremediável desejo
de vencer a fúria dos oceanos
erguer a ponte de conchas
capaz de abraçar todas as margens
e aproximar de novo os corpos
que o fogo inflamou

Talvez seja esta distância
afinal de contas
aquilo que para sempre nos une

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segunda-feira, 23 de junho de 2014

O segredo de Deus


O silêncio é um sinal de Deus.
A palavra do infinito amor
a reluzir naquilo que o fogo murmura
num idioma há muito esquecido.
Deus não mexe os lábios de pedra
nem gagueja como o vento
ao atravessar o verde da folhagem
mas é num voo de pássaros
que estende o colorido das suas sílabas
fluindo numa oração comovida.
E esse é o seu grande segredo.

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sexta-feira, 11 de abril de 2014

A menina que salta à corda


Uma menina sorri e salta à corda
sem nunca perder o equilíbrio
ignorando que há muito já morreu
e que é apenas um oxidado reflexo
que velhos espelhos continuam a devolver.

Tem as feições obscurecidas pelos anos
e pelos ventos que atravessaram
os muros brancos de um quintal extinto
mas não perdeu a infantil vocação
de quem sabe as fórmulas de burlar o tempo.

Descalça e imune às caricias do gelo
levanta repetidamente os pés do chão
enfeitiçada pela luz que a tarde eternizou
sempre que a corda desenha no ar
a cadência febril da sua elipse.

E enquanto houver quem seja capaz
de alimentar o rastilho desse movimento
não deixará nunca de pular sobre a corda
nem de ser a menina que sorri
ignorando qualquer memória da morte.

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domingo, 23 de março de 2014

Um nome que atravessa toda a eternidade


O anjo da revelação chega ao entardecer
com um livro fechado debaixo do braço.
Uma sebenta de capa negra e gasta
onde se encerra o clamor dos desertos.
Todas as palavras que Deus sussurrou
na sarça ardente de uma voz sem rosto.

O anjo da revelação traz o frio nos lábios
e grita para as profundezas de um poço
a metáfora azul da separação das águas.
E com a cor do sangue que há de ser vertido
risca na brancura imaculada da pedra
um nome que atravessa toda a eternidade.

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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

NEFERTITI - A bela que veio


I

Frente a um espelho de prata
uma mulher contempla seu rosto.
O mais belo entre os mais belos.
Não é ainda a pompa e o mito
que o tempo há de amadurecer.
Apenas um rosto jovem e radiante.
Uma joia que chega pela manhã
envolta na transparência do linho.
Como o sol que desponta
incendiando o rebordo das dunas.


II

Um coro de jovens e formosas virgens
entoa cânticos de júbilo.
Um hino a anunciar um recomeço.
Um ciclo de glória e redenção.
Retinem sistros de prata
flautas e harpas de doze cordas.
A casa está de novo iluminada.
Uma nuvem de incenso ergue-se
como um obelisco perfumado
espargindo a boa-nova.


III

Abrem-se as portas do templo
para receber aquela que veio.
Ungida pelas águas do rio
e coroada pelos sete raios solares
chega numa liteira dourada
coberta por um véu diáfano.
Uma coluna de escravos negros
transporta-a no alto dos braços
e com suaves e ritmados movimentos
aos pés do trono a depõem.


IV

Dezoito dias duram os festejos
dentro das muralhas da cidade.
O tempo que a tradição reclama
para que se cumpram todos os presságios.
São invocadas as deusas da fertilidade.
Ritos que reproduzem movimentos cósmicos
e garantem a ancestral harmonia
com os mundos ocultos e superiores.
As luzes que agora se acendem
irão arder toda a noite.

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