domingo, 22 de dezembro de 2013

Eternidade branca


Era um tempo incerto e remoto
que a memória já não distingue.
Tinha eu de novo nascido
ou talvez tivesse apenas morrido
e flutuasse entre luz e escuridão
como fio de água que o rio arrastava
numa súbita e ofegante transparência.
Não sei já se chegava
ou se me preparava para partir,
se vinha de um longe desconhecido
ou se ia para mais longe ainda.
Estava numa fronteira distante
entre duas realidades difusas
e meu corpo, inocente e despido,
guardava ainda o aroma a terra fresca.
Ou será que era o perfumado ardor
de um útero que se tinha incendiado?
Não consigo recordar quando foi
nem que idade teria nesse tempo,
sei apenas que rodopiava no vazio
atravessado por uma eternidade branca.

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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Revelação


Desfolho-te lentamente como um livro secreto
que esperou entre o pó das prateleiras
que eu viesse de longe beber as palavras
que vestem as folhas brancas da tua nudez

Estendo os braços e acendo esse lume
como quem retoma uma leitura há muito interrompida
a febre de um sentimento nunca consumado
a cega vontade de te decifrar

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sábado, 30 de novembro de 2013

Vestido branco


Um vestido branco afasta-se
como quem caminha
sacudido pela ventania

Um ponto luminoso
no negro da estrada
a ser devorado pela escuridão

O som de passos mutilados
ao encontro do vazio
até se perder para sempre de vista

E tudo o que fica
é a memória dessa ausência
a crescer com a distância

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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Coisas que nunca haveremos de saber


Um homem sentado debaixo do alpendre
mergulha numa estranha abstração
enquanto espreita o interior de uma ânfora
onde a soma dos dias ali depositados
é igual à distância até agora percorrida
pela sombra que lhe escurece os passos.
E não consegue apartar-se dessa visão.
Como um cordão umbilical que o prende
a um delírio que flui de fora para dentro.
Uma névoa a ofuscar o acrílico da retina.
Um túnel profundo e a perder de vista
onde se transvia em busca de uma luz.
E tudo aquilo que vê nessa transparência
que reveste o fundo argiloso da memória
são os presságios que a ventania juntou
após correr a solidão branca dos trilhos.
A curva onde se cruzam todos os limites
de uma claustrofobia inacabada e futura.
As cores com que se acendem as noites.
Coisas que nunca haveremos de saber.

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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A cor desfigurada das manhãs


A cor desfigurada das manhãs
assume tonalidades de um plástico baço
sacudido pelas engrenagens do frio
e todos perguntam pela luz do sol
sabendo que é só uma memória esbatida,
uma missanga que se esconde no horizonte
corrompida pelo fascínio da sombra

Um presságio atravessa a esteira gasta
onde as mulheres ergueram rezas e feitiços
invocando um alívio que nunca chegou
e todos perguntam pelo fim da noite
sabendo que nenhum deus os escuta
e os céus permanecem acorrentados
à caligem de uma paisagem alcatroada

Banidos de uma sina anunciada pelos profetas
os homens procuram no fundo dos poços
um reflexo que os liberte do abraço do breu
e todos os dias aos oráculos perguntam
com os olhos vidrados pelo desamparo
quem foi que derramou no azul da tela
a cor desfigurada das manhãs

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sábado, 28 de setembro de 2013

Últimos sinais


Talvez uma réstia de perfume antigo
perdure ainda na orla do teu vestido
quando sacodes os cabelos molhados
e te libertas da persistência da chuva.
Talvez o tempo não tenha apagado tudo
e nalgum lugar repouse ainda a inocência
que um dia atravessou a claridade dos dias.
Talvez a memória breve daquilo que fomos
ainda se abrigue num rumor de ventania
ou no frio amadurecido dos teus lábios
quando lentamente fechas os olhos
e escutas, no mais profundo de ti
os últimos sinais da minha respiração.

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sábado, 31 de agosto de 2013

Depois dos cinquenta


Depois dos cinquenta
o caminho torna-se mais inclinado.
A descida acentua-se
numa descontrolada vertigem
que invariavelmente termina
do outro lado do rio
num desamparo
sem margens nem retorno.

Entretanto
regressam as vozes da sede
e o corpo se transforma num deserto
onde a febre e o pó
lentamente escavam na areia
a dormência de uma cegueira nova.
A anunciação do sono
que há de chegar.

A paisagem regurgita
para um cálice que o vento sorve
resquícios oxidados de sémen
e tudo o que se foi acumulando
à volta da pele enrugada
despojando-se daquilo que lhe foge
e já não nos pertence.
Nem nunca pertenceu.

Falta-nos ainda assistir
através das janelas embaciadas
à derrocada da claridade.
O recorte último da ruína
a preparar os trilhos da ausência
que o ocaso celebra já
sob o velho alpendre onde repousa
aquilo que nos prende ainda à vida:

A delapidada ilusão de querer ver
os filhos seguindo seus próprios atalhos
sem receio de se perderem
e ter ainda uma réstia de lucidez
e algum alento extra
para acompanhar os netinhos ao jardim.
Como uma derradeira prova a superar
antes do acerto final de contas.

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domingo, 25 de agosto de 2013

Um atalho para medir a ausência de Deus


Um balouço rangeu toda a noite
o queixume da madeira encharcada
como uma oração que o vento rumina
com os lábios gretados pela insónia.
Tolhidos pelo desamparo da sede
com que a chuva ameaça o futuro
sombras esguias sentam-se ao luar
à espera daquilo que nunca regressa.
Varando os trilhos da memória.
Buscando no fumo e no bojo do frio
um atalho para medir a ausência de Deus.

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quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A idade das pedras


Quando eu tiver a idade destas pedras
que o mar acaricia com língua salgada
e o meu futuro forem apenas memórias
esvoaçando nas quilhas do esquecimento
não mais serei refém desta melancolia
que o vento desenha no areal do entardecer.

Quando eu for da idade destas pedras
lambidas pelo embalo da ondulação
e meu nome tiver sido apagado da areia
pela espuma branca de muitas marés
sentar-me-ei aqui neste velho pontão
como uma embarcação ancorada ao sol
na eterna transparência de um voo suspenso
a decifrar o segredo azul dos oceanos.

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segunda-feira, 8 de julho de 2013

Cinco décadas


Um rosto com cinco décadas
enfrenta-me do outro lado do espelho
jurando que é o meu reflexo.
Deteto-lhe um sorriso vago
que me faz lembrar por instantes
qualquer coisa da infância
mas não me reconheço nesta miragem
baça transparência de um corpo
esmagado pelo crescimento dos ossos.

Olho-me uma vez mais
como quem contempla uma foto gasta
e o espelho não me mostra quem fui
mas apenas um vago reflexo
um afastamento abstrato e envelhecido
que o estio foi cristalizando;
aquilo que agora sou:
um rosto com cinco décadas de profundidade.

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quinta-feira, 20 de junho de 2013

Estrelas cintilantes


A pedra é um fogo que arrefeceu
quando o céu derramou as primeiras águas
saciando a sede profunda do mundo

A flor é uma pedra carregada de pétalas
que estende suas raízes perfumadas
abraçando a claridade das manhãs

A borboleta é uma flor que ganhou asas
e se solta das amarras da terra
seguindo as pegadas livres do vento

O amor é uma borboleta colorida
que voa para lá de qualquer horizonte
ao encontro de um sonho maior

Um dia todos seremos estrelas cintilantes

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domingo, 2 de junho de 2013

Peregrinação


Nenhuma distância os impede de chegar.
Vêm com o vento e com as chuvas breves
que amansam a aridez dos caminhos
à espera de encontrar um outro norte
uma fenda no coração negro da rocha
ou um caminho de retorno a casa.
Vêm do fundo nebuloso das quimeras
e dos lugares eternos do medo
com as mãos cruzadas sobre o peito
e um assobio de fogo à cintura
para iluminar por dentro a escuridão.
Trazem nos cabelos um perfume antigo
como um pacto firmado ao redor das fogueiras
e rubros lanhos na exaustão dos pés
para esconjurar a febre da lonjura
e se resguardarem da memória do choro.
Trazem um desejo de aves migratórias
a abraçar as manhãs que nunca viram
num voo solitário sobre as dunas
ensaiando a redenção de esconsas feridas.

Quando chegam, com o rosto estragado pelo frio
e o coração a fervilhar de sobressaltos
lentamente entregam o corpo à sede das areias
e à sombra das pedras que se erguem para o alto
respondendo a um apelo que vem de cima.

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segunda-feira, 20 de maio de 2013

Dentro do poema


sento-me aqui
à sombra desta miragem
a acariciar as letras do teu nome
a revolver as palavras
que a insónia me sussurra
enquanto a tua imagem desliza
abrindo vagarosos trilhos
por entre o marulhar das águas
na dormência da memória

é apenas um solitário jogo
que a imaginação tece
um segredo de tinta coada
a expurgar da brancura da folha
a inércia da tua ausência
a rasurada esperança
de que um simples verso te anuncie
ou traga de novo
a luz que o verão esgotou

gestos que vou ensaiando
com o aparo persistente da lapiseira
até sucumbir à febre do desejo
e sílaba a sílaba
reconstruir o néctar do teu rosto
até que o papel se incendeie
aveludado e liso
como um espelho iluminado
e só o reflexo do amor caiba
dentro do poema


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quarta-feira, 8 de maio de 2013

Equilíbrio


Um homem segue seu caminho
temendo não vislumbrar um fim.
Sabe que, a qualquer altura
sob os pés que resvalam
um alçapão se irá abrir.

Um homem caminha
como quem se afoga.
Em queda livre.
Sempre a descer.
Não existe terra firme
neste néon vago e profundo.

Como se as águas
se tivessem retirado com a maré
e deixassem a descoberto
uma cidade enterrada no lodo.

É difícil manter o equilíbrio.


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sábado, 20 de abril de 2013

Fim da viagem


Aproximas-te agora
do fim da viagem.
Pelo estremecer do carril
e da poeira que se levanta
cercando a paisagem
adivinha-se já
a luz baça da última gare.
Há um rumor de cinza
no freio que chia
anunciando o limiar do frio
e uma sombra cinzenta
que acena com o vento
lembrando os gestos definitivos
de uma despedida.

Na parca bagagem
trazes aquilo que te sobrou
dos sonhos que envelheceram
à espera que a noite se esgotasse:
algumas lembranças
marcadas a fogo
na carne enrugada da memória,
uma fatia de sol
trazida da longínqua infância
que ainda não se perdeu de todo,
e um sorriso traído
no olhar exausto
de tanto atravessar
a escuridão dos túneis.

Contemplas agora
o lugar vazio
de um súbito regresso
ao ponto de partida,
a derradeira imobilidade
que te vem resgatar
à fragilidade exausta
de um voo encalhado.
Sozinho no apeadeiro
a ver a noite partir
e a manhã que chega
branca e cintilante
a colorir-te os contornos do rosto,
até à transparência da luz

enquanto lentamente
te debruças
sobre as malas por desfazer.

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sábado, 13 de abril de 2013

Um milhão de vozes


Se uma voz se levantar de um fundo de névoa
sacudida pelo frémito impaciente da insónia
não será ainda um grito, mas tão só um lamento
uma fala virada para dentro de uma aragem estéril
qualquer coisa que se desmorona precocemente
sem nunca deixar de ser apenas um esboço

Se cem vozes se elevarem acima desta angústia
amadurecidas pela persistência cega do medo
não será ainda o princípio de uma metamorfose
nem o movimento de portas a bater na escuridão
mas somente a mágoa com que os lábios se fecham
num murmúrio que a noite rapidamente devora

Se mil vozes se erguerem numa abstração branca
como um aviso a irradiar a embriaguez algemada
ou o som de alguma coisa que lentamente começa
fizer estremecer a sombra transitória dos alicerces
ninguém poderá já suster o rumor que se expande
liberto da retórica que o silêncio esculpiu na pedra

Se um milhão de vozes se exaltar ao rés do poço
sacudindo o relento enroscado no frio dos ossos
e os ecos que o furor desse sopro irão prolongar
subitamente rasgar uma fenda no círculo fechado
de nada valerá às muralhas que então desabam
apertar mais e mais o abraço inquinado do cerco

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sexta-feira, 29 de março de 2013

O estertor das rosas


As rosas bebem as últimas águas
encurraladas no fundo da jarra
com as raízes atrofiadas
pelo abraço estéril da porcelana.
Inclinaram o tronco para a frente
numa respiração baça e amputada
numa agonizante vertigem
de que são incapazes de se libertar
enquanto lentamente se despojam
do peso murcho das pétalas
e de uma réstia nostálgica de perfume
que os pássaros já não vêm sondar.


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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Estátua de areia


Gostava de envelhecer sem sobressaltos
num recanto iluminado pelas carícias da alvorada
a desenhar no branco dos dias por escrever
o silêncio dos versos guardadas no peito

Gostava de envelhecer sob o rumor das mantas
acariciando as cores esbatidas da infância
sem o som de cascos a rasgar na poalha dos ossos
a amnésia cega e irreversível do poente

Gostava de envelhecer como quem chega de viagem
e se deixa embalar pelo requiem da memória
tecendo as palavras que me servirão de legado
até que uma sonolência lenta e profunda
se erga da fragilidade de um poema interrompido
e me arraste pela eterna cegueira do crepúsculo

transformado numa serena estátua de areia

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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O grito


O pintor desenhava na tela
intricados dédalos
onde vagueava pelas tardes
à procura de um caminho.
Um norte qualquer
para uma ponte que não existia.

Até a paisagem se toldar
num crepúsculo adiado
e os traços difusos do pincel
lhe devolverem as cores densas
de um grito
tolhido no frio da boca.

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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Jogo de espelhos


Esboço um bater enferrujado de asas
incapaz de retomar o rumo do voo
interrompido pela chegada do temporal
e todos os dias me deixo retalhar
pelo frio que desce com a noite
envolto numa adaga silenciosa

Há um poço seco e profundo
onde outrora havia uma árvore.
Um aviso para os que ainda sonham
agarrados a uma visão antiga.
Um mal que a paisagem regurgita
e se estende para lá do fim das ruas

Uma voz sai de dentro dessa fenda
como um animal exposto ao frio,
um lamento que o vento desfralda
onde o inverno moldou o barro
que coalha agora a sombra dos becos
que galgam os patamares das casas

Arrastando as asas no alcatrão
busco um mapa que me revele o caminho
ou um sentido que me oriente para a claridade
até que o encantamento termine
e eu deixe de ser apenas um reflexo
devolvido pela ânsia cega dos espelhos

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