domingo, 30 de outubro de 2016

O circo está de partida


chegou a hora do circo partir
apagam-se todas as luzes
enrola-se a tenda grande
a magia está de novo suspensa

o domador recolhe as feras
o palhaço desfaz a maquilhagem
os sonhos da bailarina adormecem
nos braços do ilusionista

o dono do circo faz o último balanço
projeta num trapézio sem rede
as luzes da próxima cidade
o clamor das multidões adiadas

os veículos põem-se em marcha
a caravana parte em silêncio
e o que fica para trás é só poeira
ninguém se veio despedir

o resto da noite
é devorado pela vertigem do asfalto

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segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Francisco visita Auschwitz


Francisco caminha em silêncio.
o chão foge-lhe debaixo dos pés.
invade-o uma tristeza súbita.
uma aterradora presença que flutua
sob a atmosfera saturada.
Francisco caminha sem levantar o rosto.
anjo branco que se arrasta
por dentro de uma visão aterradora.
os olhos postos no chão recordam
aquilo que o tempo não apaga
e nenhuma linguagem pode expressar.
este é um lugar de horror.
círculo fechado onde a memória
ainda tão nítida e sufocante
continua a dilacerar a carne.
as ruas nunca estão desertas.
uma longa fila fantasma atravessa-as
ininterruptamente
numa dolorosa expiação que se estende
para lá do muro da morte.
Francisco caminha contra a corrente.
à sua volta tudo estremece.
tudo parece gemer em surdina
como um queixume que se propaga.
pequenos ecos de uma litania cruel
que jamais se hão de extinguir.
Francisco leva as mãos ao rosto
e chora profundamente.
como quem pronuncia uma prece
ou se tenta libertar de uma dor invisível.
hoje
e em dias como este
assalta-o a inconsolável vergonha
de também ser homem.

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domingo, 29 de maio de 2016

Dia grande

(Homenagem de um pai orgulhoso, a uma filha que concluiu uma importante fase da sua vida.)

os grandes dias
chegam como os outros:
pela manhã.
com um despertar igual
a tantos já passados.

mas depressa adquirem
o brilho intenso
e a magia que os irá perpetuar
muito para lá
das fronteiras do esquecimento.

que hoje seja esse dia grande
que sempre despontou nos teus sonhos.
nos mais tímidos
e nos mais arrojados.
na ânsia que tinhas de aqui chegar.

é agora.
o destino correu muito
para decifrar este mistério.
viajou por lugares inóspitos
e sem data na memória.

vacilou.
perdeu-se algumas vezes.
mas aqui está ele
de braços estendidos.
acolhe-o.

é agora.
abre as janelas
e deixa o sol entrar.
hoje será um dia
para sempre recordar.

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domingo, 22 de maio de 2016

O amor acha sempre uma saída


no coração ainda assobiam sinos
contrariando negras profecias
que o davam já como defunto
o sangue não estagnou de todo
no caudal que as veias transportam
até aos lugares inauditos
onde os barcos vão desencalhar

o outono não aniquilou a esperança
nem fechou as portadas do templo
rodas invisíveis continuam a girar
alimentando a chama entorpecida
apesar do frio que se faz sentir
o amor há de achar outro caminho

o amor acha sempre uma saída

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terça-feira, 17 de maio de 2016

Remendando o futuro


sento-me
à sombra da embarcação
encalhada na areia seca
a olhar o mar
a sua vastidão ondulante
e o horizonte na outra margem
distante
e inatingível

aproveito
esta pausa breve
a ausência de tempestades
para estender as redes
sobre os joelhos trémulos
e com linha de nylon
remendo o futuro
que ameaça romper-se

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domingo, 1 de maio de 2016

No fundo da taça


nunca andei de avião
nem acariciei a brancura da neve
nunca passei uma noite num hotel
nem comi comida de hospital
nunca fiz voluntariado
nem tive cão algum
para ir passear a solidão
à noite pelas ruas desertas

nunca andei a cavalo
sem ser nos sonhos mais selvagens
nunca senti saudades
dos lugares que não conheci
nem esperei quem me levasse
pelo caminho certo
ou me desse um dia a provar
o aparato do júbilo

se segurasse a minha vida
numa mão fechada
e a espremesse gota a gota
para um copo de pé alto
quem seria capaz de reconhecer
a tonalidade púrpura dos sonhos
no líquido ralo e acre
depositado no fundo da taça?
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sexta-feira, 8 de abril de 2016

Para lá da ponte


fecho os olhos
e sinto-me a cair
sem ter onde me agarrar
a pique
sou levado
pela vertigem da queda
como um avião
abatido pelo inimigo

aterro
sem estrépito
nem sequelas aparentes
num terreno de ninguém
escapo ileso ao embate
e começo a caminhar
por entre o arvoredo
mas não sei onde estou

os céus são estranhos e baços
em permanente mutação
tetos baixos
carregados de mistério
avanço sem hesitações
como se já conhecesse o caminho
ou estivesse alguém
do outro lado
à minha espera

ouço portas que batem
ferrolhos que rangem
ecos que se prolongam
perseguindo-me os passos
véus a esvoaçar na penumbra
agitando a paisagem
nada me pode deter
sigo a direção do vento

há alguém à minha espera
para lá da ponte
pequenos vultos sorridentes
que me acenam na margem
coberta pelo musgo

chego-me a eles
reconhecendo-lhes os rostos
cintilam
a sua luz ofusca-me
antes de se esfumarem
abruptamente
quando os tento abraçar

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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Finisterra


o caminho é daqueles que o atravessam
pequenos passos que chegam de longe
trazendo um ritual de sede e poeira
a errância que nos ossos alastra
a sedução longínqua de velhos sinos

às vezes é só a chuva que os acompanha
a ilusão que traça itinerários
o cajado onde a vontade se ampara
para que a distância se possa medir
e passo a passo sigam adiante

não vêm de parte alguma
nem traçaram qualquer destino
nada semeiam na gravilha das margens
orientam-se pelo sentido dos ventos
envoltos num rumor anónimo

na mochila trazem somente o essencial
o dialeto intermitente da fé
sinais breves que os resgatam
quando os pés se afundam na lama
e o equilíbrio mais uma vez se desfaz

todas as moradas são possíveis
para esta viagem sem regresso
mas nenhum albergue os poderá reter
mais que o lapso de um bater de pálpebras
uma trégua para o corpo gasto pela febre

o caminho ensina e incita
desfaz os nós meticulosos do tempo
antes que o sol se debruce sobre as águas
e o mar finalmente abra suas portas
quando chegarem ao fim da terra

lugar onde tudo recomeça

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sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Claridade


no teu olhar errante
acende-se a primeira pedra
do templo por construir
a primeira palavra do poema
que fará dançar no horizonte
a bailarina azul do vento

com a subida súbita da maré
cresce na espuma do teu sorriso
a pronúncia translúcida do mar
o canto secreto das sereias
a tecer junto ao peito
a flor deslumbrada do fogo

será mais clara a noite
se me deres agora a mão?

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sábado, 14 de março de 2015

Tudo o que eu queria era um verso


tudo o que eu queria era um verso
que me servisse de leme
e guiasse através da névoa
que fosse luz de farol e porto de abrigo
um atalho na fúria da rebentação
espuma branca estendida na areia

um verso que tivesse o brilho das estrelas
e caminhasse do lado do vento
rompendo o frio e a distância
em direção ao azul do mar

que fosse espelho de águas cristalinas
e me servisse de rosto e máscara
pedra lisa na poeira dos caminhos
rumor de sonhos no silencio dos dias
tudo o que eu queria era um verso

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