sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Delírio de sombras



Sento-me,
a um canto esquecido da tua ausência,
e espero,
enquanto não amanhece,
a aparição do teu rosto antigo,
num alucinado jogo de espelhos.

Perco-me,
nesta imobilidade febril,
onde esqueço quem sou,
e busco, num rumor anónimo,
a sombra desse sorriso desvanecido,
que me enfeitiça o alento,
de cada vez que chegas
num sopro turvo de ilusão.

Sobre os meus ombros,
pousa a lâmpada fosca da madrugada,
num silêncio de casas vazias
que me dói por dentro,
enquanto o sol, acorrentado,
se debate numa inércia de sombras,
tentando, ainda, libertar-se
da cegueira que nos tolda.

Num crepúsculo de asas sonâmbulas,
persigo o esvoaçar estonteante
da tua sombra fugidia,
no beco sem saída
dos teus lábios embaciados,
como quem esfarela a réstia de pão
que as aves famintas irão devorar.

Um ladrar repetido de cães,
nas ruas desertas do meu sonho,
insiste em me recordar
que é já tarde,
para que regresses
de um horizonte de memórias desfeitas.

Quando a manhã, por fim,
bate no vidro da janela;
eu já adormeci,
e nem sequer sonhas que te esperei,
toda a noite,
nesta folha suja
de lágrimas e tinta esbatida.

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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A noite em que eu morri!


 Ao abrir a derradeira porta do labirinto
quebra-se a casca fina do feitiço
e o meu corpo suspenso, despenha-se
do alto da falésia que separa
o mundo dos vivos do mundo dos mortos.

Sem choro nem lamentos, despeço-me
do que resta do meu corpo rasgado,
enquanto alguém, de rosto velado,
chega no dorso de um cavalo ofegante
e me atira, como uma pedra gasta,
para o fundo de uma caixa negra.
Uma multidão de rostos angustiados
reúne-se em redor dos meus restos,
num obscuro circulo de véus negros,
entoando uma melancólica ladainha
com a voz mutilada por uma foice de névoa.

Quando, por fim, a multidão se desvanece
por entre as clareiras difusas da noite,
e um sopro de gelo me abraça a alma;
não resisto à tentação de fazer uma fogueira
com as tábuas envernizadas do caixão,
e nela queimo todas as recordações
que me prendem ainda às teias da vida.
Com a mortalha rendada que me vestiram,
envio sinais de fumo para um céu de cinzas,
na fremente esperança de comunicar
com aqueles que me precederam,
e que certamente me aguardam,
algures, do outro lado da colina.

Quando a fogueira fica reduzida
a um amontoado de brasas incandescentes,
sem que ninguém responda ao meu apelo,
arrasto-me num voo de passos sonâmbulos
seguindo o estranho curso do rio
que serpenteia entre sombrias margens,
até chegar ao pontão de um cais abandonado,
onde me sento, num silêncio de defuntos,
à espera que chegue a embarcação do infinito.

Então, alheia à minha morte precoce,
tu voltas-te, fazendo ranger a cama,
e tudo se esfuma, como que por encanto,
na luz difusa que banha o quarto
por entre as frinchas horizontais da persiana.
E eu, de olhos esbugalhados,
sento-me numa ponta desolada da cama,
envolto no mutismo sombrio
que cerca os precipícios da madrugada,

à espera..., não sei do quê.


_

sábado, 22 de janeiro de 2011

Estátuas do meu jardim de lamentos



Partem,
os amigos,
ninguém sabe para onde,
sem avisar que se vão.

Partem,
na insónia das noites frias,
seguindo o rasto
daqueles que se perderam
numa ausência de chumbo.

Partem,
levantando a poeira
de um mistério de umbrais,
pelos caminhos de terra batida
donde jamais regressarão,
levando com eles a memória
de um temporal de rostos.

Partem,
num estranho impulso de ventania,
pelas pontes corrompidas
de uma infância de náufragos,
dobrando horizontes de musgo
nos patamares de silêncio
onde se perdem,
sem nunca achar o caminho de volta.

Num dédalo de névoa,
apressam o passo,
desafiando a sombra que os devora
na ilusão de eternidade
onde se confundem,
transformados
nas estátuas inertes
do jardim de pedra dos meus lamentos.


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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Era para ser um poema romântico




O sopro frio da tua ausência
entrou pela janela mal fechada
do primeiro verso,
rastejou
por entre as sílabas
da caligrafia hesitante,
devorando
toda a métrica febril
das palavras dispersas
entre as margens do papel.

Contaminada pelo hálito
desse sopro doente,
a inspiração perdeu-se
num bater de portas
nos confins da estrofe,
empurrando-me
para o canto da folha,
onde rabisco, em desespero,
o final deste poema
que era para ser romântico.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Derradeira vertigem



A nostalgia desponta, na chuva que cai
nas vielas do meu peito deserto,
quando atravesso o fogo perpétuo da memória.

Uma barca de cinzas sulca
as artérias abandonadas de uma luz esbatida,
cruzando as margens coaguladas do silêncio.

Ao longe, rostos esquecidos gemem na penumbra,
o pranto de uma eterna ausência.

Fecho os olhos, e sinto as pálpebras a ranger
por detrás da alcova fria do pensamento.

Para lá da derradeira vertigem,
um deus encharcado de invisibilidade
tece os contornos envernizados do meu rosto
numa lápide de densa névoa.

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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Promessas eleitorais



Um murmúrio enfeitiçado de chocalhos
sacode a dormência parda do rebanho
anunciando novas e vastas pastagens
muito para lá dos limites do abismo

Um arroto de búzios estragados
que traz o êxtase gritante do mar
como quem cavalga o dorso das marés
com os pés enterrados na agonia do lodo


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sábado, 8 de janeiro de 2011

Escuridão




Olhos sem luz
empurram a sombra
para dentro do dia

Numa maldição de treva
demónios do crepúsculo
cerram fileiras
e continuam a empurrar a sombra
que alastra
nos corredores asfixiados da manhã

Até que só a noite reste
neste labirinto de portas fechadas

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terça-feira, 4 de janeiro de 2011

À espera de uma outra luz



Do alto sem mácula da folha
tombou uma luz suave
sobre o mar liso do papel
onde navego pela manhã

Seus pequenos raios brilham
sobre a ondulação suave do poema
e, por breves momentos,
desviam-me do objectivo traçado

Mas eras tu,
quem eu queria captar
na viagem sem rumo
da minha inspiração matinal

E esta luz não és tu

É apenas uma luz branca
que se move entre duas margens
como uma ponte que as liga
e me convida a uma constante travessia

E eu fico indeciso,
sem saber em que margem me sentar,
à espera que tu chegues,
na luz que tarda
de uma outra inspiração


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